À Conversa sobre Livros com António Fernando Cascais

A leitura é, provavelmente, uma outra maneira de estar num lugar, escreveu o Nobel da literatura portuguesa, José Saramago.

Fonte inesgotável de conhecimento e prazer,  poderosa ferramenta de influência e transformação política, a leitura e a liberdade intelectual chegam até a ser censuradas por regimes repressivos, ditatoriais e totalitaristas, levando a que a informação, o espírito crítico sejam negados a grande parte das pessoas. 

Em pleno século XXI, assistimos cada vez mais a discursos de ódio, à propagação do medo e de conteúdos de desinformativos quanto a questões de género e sexualidade. Na Europa, EUA, Brasil e um pouco por todo o mundo, assiste-se à criação de campanhas de proibição de livros de temática LGBTQIA+. Com base em justificações de “promoção da homossexualidade” ou da “propaganda da ideologia de género”, grupos ideológicos conservadores mostram atentar a autodeterminação, a liberdade de expressão, a autodescoberta e visibilidade das experiências de pessoas LGBTQIA+.

Recordando a célebre frase de Oscar Wilde, preso numa altura em que a homossexualidade era considerada como vício e decadência, diria: “Não existem livros morais ou imorais. Os livros ou são bem escritos ou não.”

Reconhecendo a importância da leitura e da educação para as temáticas de igualdade e não discriminação, pretendemos conhecer as estantes Queer e Feministas de algumas personalidades portuguesas. Nesta conversa tivemos com António Fernando Cascais, professor, investigador, ativista, autor e organizador das obras: Olhares sobre a Cultura Visual da Medicina em Portugal (Unyleya, 2014), Indisciplinar a teoria. Estudos gays, lésbicos e queer (Fenda, 2004), A SIDA por um fio (Vega, 1997) e, em colaboração, Cinema e Cultura Queer (Lisboa, 2014), Hospital Miguel Bombarda 1968 – Fotografias de José Fontes (Documenta, 2016), Dicionário Crítico de Arte, Imagem, Linguagem e Cultura (IGESPAR, 2010), Lei, Segurança, Disciplina (CFCUL, 2009).

Como considera a representatividade dos estudos Queer e das Mulheres na academia portuguesa nos dias de hoje?

Ora bem, a pergunta do milhão de dólares. Para já, são coisas distintas e têm estatutos de reconhecimento e de aceitação muito diferenciados. Os Estudos sobre as Mulheres, de Género e Feministas já possuem cursos de Mestrado e de Doutoramento e a área dos Estudos Gay, Lésbicos e Queer encontra-se inserida neles de forma bastante minoritária e marginal em Portugal, não possuindo nenhuma autonomia e encontrando-se em permanente ameaça de apagamento e descrédito; a aceitação é muitíssimo relativa, reticente e condicional.

A representatividade dos Estudos Gay, Lésbicos e Queer (EGLQ) é formalmente e informalmente ínfima. Considera-se que a instalação de uma área de estudos nova costuma passar por seis fases básicas na academia: “fase ativista” (em que se começam a oferecer módulos indivíduais específicos no quadro das disciplinas estabelecidas), “fase de estabelecimento” (em que são introduzidos módulos genéricos e temáticos de EGLQ e criadas unidades interdisciplinares de ensino conjunto), “fase de integração” (estes módulos passam a fazer parte da oferta obrigatória das disciplinas estabelecida), “fase de profissionalização” (são introduzidos programas conferentes de grau em EGLQ), “fase de disciplinarização” (são estabelecidos departamentos ou centros dedicados ao ensino e investigação em EGLQ) e “fase de autonomia” (em que eles adquirem os mesmos níveis de acreditação, e financiamento e direitos de gradução, de todos os outros). No nosso país estamos ainda na primeira fase.

O facto de ser uma das áreas de maior dinamismo, com uma proliferação exponencial de teses de mestrado e de doutoramento, de autores com currículos científicos excecionais que publicam intensamente artigos, livros e capítulos de livros, nacional e internacionalmente, de crescerem alguns projetos de investigação financiados, mas em âmbitos muito restritos (que por exemplo nunca incluem a história queer), de a procura por parte de estudantes não parar de crescer, nada disso tem tido peso para tirar os EGLQ daquela primeira fase que está ultrapassada nas maiores e melhores universidades europeias e norte e sul-americanas.

A academia portuguesa tira proveito do currículo e da abundante produção científica destas pessoas, mas sente-se mais envergonhada do que orgulhosa delas, com as quais vai praticando um extrativismo muito oportunista. Não entende os EGLQ a não ser como uma moda sem verdadeira seriedade científica, um oportunismo de quem só quer falar de si e trazer para a academia questões políticas fraturantes que põem a dignidade universitária em causa. Quem a eles se dedica não só não faz carreira, como o faz por sua conta e risco e paga um elevado preço por isso. Evidentemente que a academia nunca o admite, por receio de assumir um conflito público que só iria embaraçá-la, mas não tolera e hostiliza subrepticiamente tod@s aquel@s que considera que “a põem nas bocas do mundo” de uma maneira sobre a qual ela não tem controle. Pode ser que as mais jovens gerações queer venham a ter uma experiência diferente da minha, mas o que vejo é que a academia nada faz para as integrar. 

Pode-nos falar um pouco mais sobre a sua última obra: Dissidências e Resistências Homossexuais no séc. XX português? O que falta saber-compreender sobre a história da homossexualidade em Portugal?

O livro pretendeu reunir todos os investigadores, juniores e seniores, que trabalham ou trabalharam os arquivos históricos portugueses que contêm informação sobre a perseguição judiciária aos homossexuais no século XX português.

Além de textos nunca anteriormente publicados, há alguns textos que não são completamente inéditos, porque já tinham aparecido em outras versões em revistas científicas estrangeiras, mas eram pouco acessíveis a um público nacional fora da academia. Uns foram traduzidos, outros revistos. A escolha do título, de minha exclusiva responsabilidade, deve-se ao facto de eu não querer reduzir a penalização das homossexualidades ao Estado Novo, porque não foi ele que a criou, aproveitando, de facto, legislação e práticas policiais e judiciárias que já vinham do regime republicano. Na verdade, cada regime pegou no assunto (por assim dizer) no ponto onde o anterior o tinha deixado, mas o regime fascista agravou consideravelmente a ferocidade da perseguição.

Por outro lado, tratou-se também, da parte de todos os colaboradores, de começar a pôr os pontos nos is em relação a questões nunca ou mal esclarecidas, enviesadas, cheias de mitos e equívocos, para não dizer de puras e simples ignorâncias. Por exemplo, a ideia que havia homossexuais detidos na antiga Mitra; nunca houve, embora por lá tivessem passado, mas não a cumprirem qualquer pena, e antes como albergados, em trânsito da, ou para a, colónia penal do Pisão, que, de fato, dependia administrativamente da Mitra. Além disto tudo, era necessária uma discussão, minimamente aprofundada, dos problemas da história e da memória dos homossexuais, o que fiz na introdução. Era preciso fazer o estado da questão a nível nacional e foi isso que tentei, para a lançar no nosso país. Mais, o livro é apenas o princípio de uma pesquisa mais exaustiva, que estou neste momento a levar a cabo.

No ano que celebramos os 50 anos do 25 de abril, o que considera ainda faltar cumprir para o reconhecimento da diversidade da orientação sexual, identidade e expressão de género e características sexuais de cada pessoa em Portugal?

No plano político-jurídico, já pouco falta. Podemos orgulhar-nos de ser um dos países do mundo mais progressivos no que toca ao reconhecimento dos direitos, liberdades e garantias das pessoas LGBTQI, embora as pessoas trans figurem neste quadro ainda um bocado como os parentes pobres, porque são as que mais tardiamente foram reconhecidas e aí ainda há bastante caminho a fazer. Por outro lado, a questão não é só mais e melhor legislação, mas manter e lutar pela conservação e a aplicação efetiva da que já existe. As conquistas não são adquiridos históricos lineares, cumulativos e irreversíveis. Podem recuar e não faltam, neste momento, inimigos, uns declarados, outros encapotados. Falta muita, muitíssima, formação de agentes sociais, professores e profissionais da educação, corpos de polícia, psicólogos, profissionais de saúde e de prestação de cuidados (veja-se o caso gritante dos seniores queer). No plano das medidas sociais, das respetivas práticas e das atitudes, aí sim, ainda a procissão vai no adro. Costumo dizer que, em larga medida, a homo-lesbo-transfobia nacional se limitou a entrar no armário e só espera para de lá sair “normalizada”, “lógica” e “aceitável”, mal lhe dêem oportunidade.

Junho é mês de celebrar o orgulho LGBTQIA+. Pergunto-lhe, que personalidades o inspiraram no ativismo Queer? E na literatura?

Duas, inicialmente: Guy Hocquenghem, de quem li e sobre quem li muito no virar dos anos setenta para oitenta, nos tempos da faculdade. Um dos fundadores do Front Homosexuel d’Action Révolutionnaire, cujo manifesto foi publicado em português, bem como um dos livros seminais dele, com o título Homossexualidade, opressão e liberdade sexual (Le désir homosexuel, no original francês). A SIDA levou-o no verão de 1988, quando o Chiado ardia em Lisboa. E o Michel Foucault, que foi sobretudo um fascínio intelectual, com A vontade de saber, primeiro volume de uma projetada História da sexualidade, com que contactei mal ele foi traduzido em português, em 1977.

A minha tese de mestrado, concluída em 1987 e iniciada quando ele ainda vivia, foi sobre o Foucault. Ambos determinaram todas as minhas escolhas biográficas posteriores, no que toca ao associativismo e aos estudos gay, lésbicos e queer. Senti que aquilo que queria da minha vida era validado por pessoas como eles. Mas foi importantíssimo para mim o contacto com publicações como a revista Masques – Revue des Homosexualités e o jornal Gai Pied, ambos franceses.

Na literatura, não sou nada original: como a muita gente, marcou-me a leitura das Memórias de Adriano, da Marguerite Yourcenar, quando a tradução portuguesa saiu. Não o consegui largar, mal peguei nele; li-o sem parar de um dia para o outro. Em Portugal, posso mencionar a surpresa absoluta que foram duas obras de dois autores: Jorge de Sena, com Sinais de fogo, e Guilherme de Melo, com A sombra dos dias. Em relação à (homo)sexualidade à portuguesa, o primeiro é uma belíssima meia-verdade e o segundo uma bem conseguida verdade inteira. Pela primeira vez, ficava-se a saber como era, literariamente, entre nós.

Tem algum livro/autor com que mais se identifique e retorne?

A vontade de saber, do Foucault, uma vez mais. O Foucault é muitíssimo mais complicado do que parece, mas consegue ler-se como se fosse um texto literário, um romance. Gostava de ter tempo para dedicar à literatura queer portuguesa, sobretudo à poesia, imensa, mas falta-me o tempo, com tudo o que de mais teórico tenho sempre nas mãos. 

 Que leitura nos pode recomendar?

Tanta coisa! O mesmo livro do Foucault, ainda outra vez e sempre. O certo é que se continua a ler muito pouco em Portugal. Mesmo nas universidades, os meus estudantes não lêem os originais, não vão diretamente aos autores queer, a Butler, a Sedgwick, a Ahmed, a Preciado, ao Halperin, que tem livros fundamentais sobre a história e a cultura queer (How to be Gay, por exemplo, importantíssimo), lêem antes coisas sobre el@s online.

Quanto a literatura queer portuguesa, uma mão-cheia apenas, porque muito mais haveria. Sobre as (homo)sexualidades na guerra colonial, os belíssimos e pungentes Os navios negreiros não sobem o Cuando, de Domingos Lobo, o Até hoje (Memórias de cão), do Álamo Oliveira, e Persona, de Eduardo Pitta.

A poesia queer portuguesa que anda muito esquecida e tem coisas soberbas: lembrem-se as obras de Fernando Luís (Sampaio), Luis Miguel Nava, Isabel de Sá, Helga Moreira, Paulo Teixeira, António Franco Alexandre, José António Almeida, a mais discreta Ana Luísa Amaral, o gigante Al Berto, o mais recente André Tecedeiro, os clássicos Botto e Judite Teixeira, reeditados, além dos textos mais expressivamente queer do Pessoa. O Cesariny, o Ary dos Santos, este todo por redescobrir. De boa parte deles, têm saído as obras reunidas, por isso são relativamente fáceis de encontrar. No romance mais recente (Valter Hugo Mãe, Raquel Freire, e tantos outros), ainda não conheço o suficiente e bem preciso).

Bio: Fui professor e investigador toda a minha vida. Intervim, participei, militei quando senti que era preciso e onde me senti preciso. Ficam os meus livros, de que gostaria de destacar o  Indisciplinar a teoria (Fenda, 2004), A SIDA por um fio (Vega, 1997), e O vírus-cinema: cinema queer e VIH/sida (Lisboa, 2018), Cinema e Cultura Queer. Queer Lisboa – Festival Internacional de Cinema Queer (Lisboa, 2014), em colaboração com o João Ferreira, diretor do Queer Lisboa a cuja equipa tenho um imenso orgulho de pertencer.  Dissidências e resistências homossexuais no século XX português, com um conjunto de gente notável, e Hospital Miguel Bombarda 1968 – Fotografias de José Fontes (Documenta, 2016), fizeram-me especialmente feliz. Quanto aos livros mais laboralmente “académicos”, acredito que fiz um bom trabalho, mas são capítulos neste momento encerrados, até porque a universidade nem sempre deixa boas recordações, longe disso. Estou farto de publicar, já vão em cerca de três centenas os textos de toda a espécie, tamanho e feitio, nas áreas da Mediação dos Saberes, da Bioética, da História da Psiquiatria, da Cultura Visual da Medicina, dos estudos foucauldianos e dos estudos Queer e de Género. Mas acho que nunca vou conseguir descansar. Sou rematadamente obsessivo-compulsivo quando se trata de vocação-trabalho. Cheguei àquela altura da vida em que já vimos o nosso futuro pelo simples facto que já lá estamos. Há muito tempo que por cá ando, mas, antes de me ir embora um dia destes, ainda tenho muito que fazer e receio não conseguir dar vazão a tudo.


Uma resposta a “À Conversa sobre Livros com António Fernando Cascais”

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