“Lá em casa manda ela. Mas nela mando eu.”

“Lá em casa manda ela. Mas nela mando eu.”

Provérbio Popular Português

Ao longo do desenvolvimento das sociedades (pós)modernas a representação da feminilidade esteve vinculada ao seu papel no quadro familiar, na sua ligação à maternidade e à puericultura. Por consequência de determinismos biológicos, impostos pela imutabilidade das representações sociais, da discriminação das funções e papeis entre géneros, o papel da mulher tem sido remetido para o auxílio e cuidado das funções da vida privada. Partimos do pressuposto que a diferença de sexos é uma construção cultural e histórica, mutável e variável conforme o desenvolvimento de cidadania de determinada sociedade, sendo que o questionamento das diferenças sexuais, a articulação entre as representações e as práticas sociais verificam uma necessidade de supervisão e revisionismo constante.

A representação cívica e política das mulheres nas sociedades contemporâneas demorou séculos a ser alcançada. Em Portugal, apenas durante a Primeira República e o pós-Revolução de Abril de 1974 se começam a verificar os primeiros passos da representação cívica do género feminino, não esquecendo a continua teia de discriminação e invisibilidade presente nos seus quotidianos, como veremos mais à frente. Ainda assim, hoje, o papel da mulher e do género na opinião pública é diferente. Crescera o empenhamento cívico das mulheres na participação de atos políticos e ideológicos do seu tempo*. O associativismo e a mobilização feminina, muito determinados pelas vagas e movimentos feministas, mostram-se ferramenta de rutura de determinismos discriminatórios, encorajando-as a ser membros ativos da comunidade civil, na conquista de direitos cívicos e políticos, fruto também de uma sociedade que se reinventa após 1974.

O Estado Novo defendia a família tradicional colocando a mulher como seu pilar e o homem como seu sustento, o chefe-de família. As relações familiares seriam orientadas por um rígido sistema de assimetrias entre géneros e pela autoridade masculina. Escrutinavam-se funções para a mulher e para o homem de forma a sustentar o poder da família enquanto forma de disseminação dos ideais do regime, mas também como disfarce de uma desigualdade presente nos papeis de género que colocava a subalternidade no feminino. À mulher cabia-lhe ser submissa, modesta, maternal, prestadora de cuidados e de sua casa, devendo obediência ao homem. O seu aparelho sexual servia de embrião à representação social em que eram colocadas, expostas à violência física e psicológica, muitas vezes até à morte, mostrando ser vítimas de um silenciamento atroz.

Salvo as exceções de classe social que proviam a mulher de um trabalho ou profissão fora de casa, como o trabalho no campo, na indústria, a assistência social, o ensino primário e enfermagem, a obediência ao casamento e as suas funções enquanto mãe e esposa seriam sempre colocadas ao nível da sua primária função*. O acesso das mulheres a algumas atividades profissionais também era dificultado, retirando-lhes o direito ao casamento, como serve de exemplo as profissões das telefonistas e enfermeiras. As carreiras diplomáticas e judiciais eram também negadas não podendo concorrer profissionalmente com o homem, com uma remuneração francamente acima da sua.

Com a revolução de Abril, a política invade a vida dos portugueses, diminuindo a fronteira entre a vida privada e a vida pública. Todos os indivíduos são iguais perante a lei, levando a que os casamentos fossem resultado da livre decisão de homens e mulheres. Verificam-se mudanças nos rituais de formação do casal, os membros conjugais começam a procurar um equilíbrio entre a emancipação individual e as suas responsabilidades familiares e sociais. Há um maior investimento na carreira profissional da mulher, práticas mais autónomas em relação à gestão do dinheiro e às atividades de lazer fora de casa. O casamento vai gradualmente passando de sacramento a contrato civil, levando à redução do seu número e sendo celebrado cada vez mais tarde.

Com o reconhecimento do valor próprio à singularidade do indivíduo, à legitimidade e ao direito de ser feliz, a realização e gratificação afetiva individual destaca-se sobre a vida familiar. A Lei sobre o direito de planeamento familiar e educação sexual foram decisivas para a democratização da contraceção, levando ao aumento da dissociação entre sexo e procriação. Aqui, a passagem de uma sexualidade centrada na procriação para a valorização da componente erótica da vida conjugal enquanto forma de bem-estar na relação. A instituição do divórcio por mútuo consentimento e o surgimento de novas configurações familiares trouxeram também um igualitarismo assente na indiferenciação do desempenho de tarefas, da proximidade entre cônjuges e pela comunicação recíproca como critérios para a satisfação conjugal*.

Segundo este rasgo de liberalização democrática das sociedades ocidentais no séc. XX, o papel da mulher passa do “pós-dona de casa” para a atribuição de poder de decisão sobre o seu percurso académico, profissional e familiar. Lipovetsky, numa das suas obras chama-lhe a “Terceira Mulher”, mostrando que no percurso da história contemporânea do feminino, as mulheres optam cada vez mais pela sua individualidade e sucesso académico/profissional em prole do casamento e da autonomização do apoio parental, aquando os regimes de Estado Democrático.

Nos tempos correntes as mulheres enfrentam uma luta na conciliação destas duas formas de vida, a familiar e profissional, mostrando ser uma das novas metas de luta por parte da igualdade de género. Toda a pressão e sacrifício causado pela “dupla jornada de trabalho”, penaliza as mulheres quer ao nível da esfera profissional como da vida privada. Exemplo disso é a dificuldade na contratação como ao nível da progressão de carreira por via da interrupção profissional devido à maternidade, ao mesmo tempo o prejuízo de falta de tempo para os filhos e família, como ao nível do sucesso social e do tempo de lazer.

O envolvimento dos homens na vida doméstica, no papel da maternidade, tem sido objeto de supervisão por instituições nacionais e internacionais com vista a regularizar o direito à família, de forma a promover o direito de representação e igualdade do género*. Na União Europeia, a Comissão para a Igualdade de Oportunidades procurou promover a “paternidade ativa”, nomeadamente através do aumento do período de licença de paternidade, da transformação de algumas práticas de trabalho e da introdução de alterações nos longos períodos de trabalho. Contudo, o contributo masculino para as tarefas domésticas e o cuidado dos filhos não parece ter aumentado, mostrando franco insucesso da adesão que algumas políticas sociais se dedicam*.

A dificuldade do alcance das medidas de ação positiva na desconstrução de preconceitos de género é evidente. Espelho disso é a divergência de oportunidades ao nível das carreiras e da igualização salarial entre géneros. Sobe a batuta da Comissão para a Cidadania e Igualdade (CIG), a Lei sobre a Igualdade de Género no Trabalho e no Emprego foi aprovada em 1979, no entanto, a desigualdade salarial entre homens e mulheres a desempenhar o mesmo emprego mostra fortes desequilíbrios ainda nos dias de hoje. Outro exemplo de relativo insucesso é a Lei da Paridade (2006), que pretendendo assegurar a visibilidade das mulheres em cargos políticos (50/50%) com o género masculino, ainda mostrando o aumento do número de mulheres com participação em partidos políticos e com representação na Assembleia da República denota uma dificuldade na chegada da mulher a cargos profissionais de topo, como é o número de mulheres a concorrer ao cargo de Primeiro-Ministro ou à Presidência da República*. Fruto de condicionalismos de vária ordem, política, profissional, familiar ou social, resulta a resistência às questões de discriminação sexual que leva à disjunção entre as leis e práticas sociais quando se fala de identidade de género*.

Posto isto e em jeito de conclusão, a desproporcionalidade da representação do género feminino nas sociedades contemporâneas não é de agora. As ameaças aos direitos das mulheres arrastam-se no tempo fazendo-se sentir de especial forma em períodos de crise como os que vivemos agora. A resposta do confinamento obrigatório à pandemia do COVID-19, veio limitar os direitos e liberdades de todos nós, colocando visíveis as desigualdades sociais como em particular as desigualdades de género. O risco de violência doméstica aumenta conforme a passagem dos dias de confinamento, a crise económica que se instala mostra colocar em risco todas as mulheres desproporcionalmente representadas no seu trabalho e mal remuneradas, sejam elas trabalhadoras temporárias, empregadas domésticas ou funcionárias de serviços de pequena escala. Devido ao encerramento das creches e escolas, a sobrecarga do trabalho ao nível dos cuidados domésticos e da família é também acrescida. A exposição feminina aos riscos da desigualdade e da dignidade humana torna-se mais gritante, mostrando a necessidade de dar prioridade aos seus direitos e voz aos seus interesses. É urgente quebrar a invisibilidade de género, através do exercício de reflexividade e autocrítica face às representações de género e ideais sobre a maternidade, sobre a construção de novas práticas e percursos femininos, sobre o papel do feminino na esfera pública e privada, para o equilíbrio de toda uma sociedade.


Este texto foi publicado originalmente no site de notícias Interior do Avesso.


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