Angela Davis

O feminismo não passa só pela igualdade de género, envolve tantas outras coisas. E envolve muito mais do que género. Existem múltiplos feminismos, certo? Tem de abranger uma consciência do capitalismo, e do racismo, do colonialismo e das pós-colonialidades, e das capacidades, e mais géneros do que conseguimos sequer imaginar, e mais sexualidades do que julgamos ser capazes de nomear. O feminismo ajudou-nos não só a reconhecer uma série de ligações entre discursos, instituições, identidades e ideologias que muitas vezes tendemos a considerar separadamente; mas ajudou-nos também a desenvolver estratégias epistemológicas e de organização que nos levam para lá das categorias “mulher” e “género.”

A Liberdade é Uma Luta Constante, Angela Davis (2020:131)

Angela Yvonne Davis, ativista negra americana, candidata à vice presidência dos Estados Unidos na década de 1980, autora dos prestigiados livros “Mulher, Raça e Classe” (1981), “Mulheres, Cultura e Política” (1989) ou ainda, o mais recente, As Prisões Estão Obsoletas? (2003), continua a ser – após mais de cinquenta anos de luta, sofrimento e dedicação – o rosto mais reconhecível da esquerda nos Estados Unidos.

Fiel e determinada à vocação revolucionária, dedicando a sua vida à justiça e transformação social, Davis, tem servido de inspiração a movimentos e causas sociais em torno dos direitos civis pela coragem e militância em defesa dos direitos das mulheres e anti-racistas. Formada em Filosofia, a academia tem sido um palco de reflexão e produção de conhecimento critico sobre género, classe e sexualidade de um ponto de vista interseccional. Num esforço teórico e prático para demonstrar como a raça, o género e a classe são inseparáveis nos contextos sociais em que vivemos, a feminista tem-nos demonstrado como o feminismo negro elenca uma hipótese de resposta às dinâmicas de violência, supremacia e patriarcado perpetuadas pelas políticas neoliberais dos Estados capitalistas e imperialistas.

Nesta obra, A Liberdade é Uma Luta Constante – publicada originalmente em 2015 e agora editada pela Antígona (2020) -, a autora oferece-nos um conjunto de entrevistas, ensaios e palestras realizadas entre 2013 e 2015, discorrendo entre uma variedade de temáticas – entre o racismo, luta feminista, sistema prisional empresarial e Palestina – alertando-nos para a necessidade de construção de um movimento coletivo internacional, solidário, interseccional, contra as formas estruturais de opressão e desigualdade social.

Contudo, para desenvolver melhor esta ideia de organizarmos as nossas vidas coletivamente, a autora salienta o risco da ética individualista e egoísmo propagado pela atual lógica neoliberalista que, desprezando o interesse coletivo em prol do interesse individual, impede a cooperação e mutualismo das forças revolucionárias para a transformação e justiça social. Parafraseando Marther Luther King, Angela Davis atenta para a interdependência de liberdades e direitos assim como para as formas como a desigualdade e injustiça afetam todas as pessoas coletivamente: “A  justiça  é  indivisível.  A  injustiça  em  qualquer  lugar  do  mundo  é  uma ameaça à justiça em todo o mundo”.

Ativista de há várias décadas, Davis lembra a importância dos movimentos de massas dos anos 1960 e 1970, do ativismo de base popular como ingrediente primordial para a pressão política e  aprovação de leis que reconheçam direitos civis e permitem a transformação estrutural. Manifestação e organização coletiva que, nesta obra, invoca em prol da luta pela liberdade e resistência contra o racismo, a repressão, a pobreza entre outras formas de subjugação da dignidade humana.

O que me tem dado força para continuar tem sido o desenvolvimento de novas formas de comunidade. Não sei se teria sobrevivido caso não tivessem sobrevivido os movimentos, as comunidades de resistência, as comunidades de luta. Faça eu o que fizer, sinto-me sempre diretamente ligada a essas comunidades, e julgo que esta é uma época em que temos de incentivar a noção da comunidade, especialmente uma altura em que o neoliberalismo tenta obrigar as pessoas a pensar em si próprias só em termos individuais e não em termos coletivos. É nas coletividades que encontramos reservatórios de esperança e otimismo.

Angela Davis (2020:103)

Sobre a temática dos Estudos de Género, Raça e Sexualidade, encontramos também nesta coletânea de textos, um dos discursos que mais seduzem a leitura nesta obra. Nele insere-se a histórica problemática da definição e contestação da categoria “mulher” dentro da luta feminista, nomeadamente, pela exclusão das mulheres negras, latinas, pobres, da classe trabalhadora da definição ideológica de “mulheres” definida pelo movimento feminista até então, dirigido essencialmente por mulheres brancas e de classe média.

Que mulheres é que têm espaço na categoria “mulher”? E quais têm de lutar para nela serem incluídas? Estas são questões de especial importância ao movimento feminista e LGBTQIA+ atuais e que, segundo a autora, não diferem muito das lutas iniciais das mulheres negras e não-brancas. Como alusão, Davis, recorda-nos o ataque de Sandy Stone, autora e teórica académica sobre epistemologias trans, por parte de feministas lésbicas que a acusaram de não ser uma mulher de verdade e trazer energia masculina para espaços femininos – isto em 1979 numa discográfica feminina. Uma mulher que não era considerada mulher por lhe ter sido atribuída a designação de género “masculino” à nascença.

“Mulheres trans e mulheres trans não-brancas “são mulheres que têm de lutar para serem incluídas na categoria “mulher”, de uma maneira que não difere muito das lutas iniciais das mulheres negras e não-brancas a quem foi atribuído o género feminino à nascença. Além disso, desenvolveram uma abordagem que considero profundamente feminista, a qual seria importante de compreendermos e reproduzirmos.”

Angela Davis (2020:121)

Encorajando para o raciocínio crítico a feminista encara o apriorismo em considerarmos o que  ideologicamente é considerado “normal” e porque é que as mulheres trans são consideradas tão fora da norma?

A análise feminista do conceito de género permite-nos identificar como este está entranhado numa série de construções sociais, políticas, culturais e ideológicas. Não é uma só coisa. Não há uma só definição, e o género não pode hoje, de modo algum, ser corretamente descrito como uma estrutura binária em que “masculino” e “feminino” ocupam extremos opostos. Adotando uma posição transfeminista, a autora defende a inclusão das mulheres e homens trans, intersexuais e muitas outras formas de não conformidade no conceito de género de forma a desvincular o conceito da categoria de sexo, lógica que continua a delimitar que determinadas partes do corpo definem quem somos.

Neste livro, repleto de reflexões inspiradoras sobre a forma como as opressões se relacionam, Angela Davis convida-nos a pensar a aliança, a reciprocidade, a solidariedade e apoio, a partilha de experiências e ideias entre causas e lutas internacionais para com todas as formas de exploração e subalternização humana.

Recordando Nina Simone: A liberdade é não ter medo.

ISBN: 9789726083641 Editor: Antígona Páginas: 192


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