Terceiro Género: Possibilidade de reconhecimento legal em Portugal

Mariana de Oliveira Rodrigues

“As bases biológicas existem e demonstram per si a inevitabilidade de se reconhecer as diferenças entre os caracteres sexuais F e M, mas o foco e a atenção que lhes são dados é que levam à construção binária de género e à ideia de que existem comportamentos padrão inerentes a cada um deles. Consequentemente estas diferenças biológicas são notadas e sublinhadas pela cultura de género que está enraizada nas instituições sociais e no Direito.”

Mariana de Oliveira Rodrigues (2020:31)

Terceiro Género: Possibilidade de reconhecimento legal em Portugal, publicado em 2020, é uma obra que resulta da tese de mestrado de Mariana Rodrigues enquanto aluna de Direito na Universidade NOVA de Lisboa. Na sua investigação a autora propõe-se a analisar a possibilidade de reconhecimento legal do terceiro género em Portugal, categoria jurídica alternativa ao feminino (F) e masculino (M) que serviria todos aqueles cuja identidade não se encaixa no padrão binário de género.

Trazendo a reflexão em torno das questões de género e de expressão de género no plano jurídico esta é uma obra que analisa a marginalização e discriminação experienciadas pelas pessoas trans não binárias no Direito português e a necessidade de o adaptar à realidade vivida por muitas pessoas que não se revêem nesta construção jurídica de género.

De forma simples e direta, a categoria “terceiro género” mostra servir de instrumento à autodeterminação de pessoas que não se compadecem com a rigidez e dicotomia do género binário (F/M), permitindo que, independentemente das suas características sexuais, por razões biológicas ou de identidade de género, pessoas não bináries, de género fluído, agénero, entre outras possibilidades de identificação, sejam reconhecidas pelo Estado Português de forma a criar condições para uma vida com maior dignidade e prevenção de comportamentos discriminatórios com base na sua identidade e/ou expressão de género.

Ao longo do livro a autora mostra os esforços do plano jurídico português em reconhecer o direito à identidade pessoal e ao princípio de não discriminação e de autodeterminação com base na identidade e expressão de género. Exemplo disso é a Lei nº.38/2018, de 7 de agosto, que retirando a obrigatoriedade da correspondência entre o sexo e o género, estabelece no ordenamento jurídico português o direito à autodeterminação da identidade e expressão de género. Mas terá esta lei representado o primeiro passo para o reconhecimento de outros géneros? Uma lei que embora instituindo o direito à autodeterminação continua a permitir que este direito seja reconhecido dentro do quadro binário sexo/género e da complementaridade dos sexos no qual permite a diferenciação discriminatória entre indivíduos, permitirá o reconhecimento de um terceiro género em Portugal?

“Note-se que o que se pretende é colocar todos os indivíduos, independentemente das suas características pessoais, num plano de igualdade face à lei, mas nunca numa perspetiva de uma igualdade “igualitária” onde lhes é imposta uma homogeneidade de comportamentos e maneiras de ser, desconsiderando a sua identidade e autonomia pessoal: a isto se chama “ direito à diferença”.”

Mariana de Oliveira Rodrigues (2020:55)

Mariana Rodrigues ao debruçar-se sobre a inviolabilidade da identidade de género e autodeterminação enquanto direito fundamental da identidade pessoal mostra como a dignidade das pessoas trans, não-binárias, agénero, continua a ser violada pelo Estado Português. Ainda, mostra que a Constituição da República portuguesa prevendo no seu art. 26º o direito à identidade pessoal e o direito à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação, o respeito pela autodeterminação de género enquanto concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, do direito ao livre desenvolvimento da personalidade e identidade pessoal, continua a mostrar resistências interferindo no exercício pleno de cidadania como o é o acesso ao trabalho, o direito de participar na vida pública ou o direito de proteção contra a pobreza.

Procurando orientações internacionais para mostrar como a aplicação do reconhecimento legal do terceiro género é não só possível como desejável em Portugal, entre o Direito Internacional ao Europeu, a autora mostra a inexistência de legislação que verse diretamente sobre as questões de identidade e expressão de género a nível europeu, existindo apenas recomendações/resoluções que mencionam a necessidade de criação pelas legislações nacionais de opções não-binárias de marcadores de género, o que limita a proteção da discriminação para além do “sexo” pelos Estados-Membros europeus. Entre as recomendações citadas que mostra aprofundar as questões relativas às identidade e expressão de género e orientação sexual enquanto princípios da aplicação dos Direitos Humanos, ressaltam os Princípios Yogyakarta.

Neste documento – um dos documentos internacionais mais importantes para as comunidades LGBTQIA+, com objetivo de que os seus princípios e dispositivos sejam aplicados na legislação internacional que versa sobre direitos humanos -, lê-se:

“Todos têm direito a reconhecimento legal sem referência a, ou exigindo atribuição ou divulgação de sexo, género, orientação sexual, identidade de género, expressão de género ou características sexuais. Todos têm direito a obter documentos de identidade (…). Todos têm direito de alterar informações de género em tais documentos, enquanto informações sobre género forem incluídas nestes”. “Enquanto o sexo ou género continuarem a ser registados, os Estados devem disponibilizar uma multiplicidade de opções de marcadores de género”.

Princípios Yogyakarta, Mariana de Oliveira Rodrigues (2020:95)

Mariana Rodrigues revela que apesar da vinculação do país a vários instrumentos internacionais e europeus contra atos de discriminação com base na orientação sexual e/ou identidade de género, as narrativas ideológicas contra o reconhecimento do terceiro género continuam a impossibilitar não só o reconhecimento destas identidades como legitimam o sistema binário, dicotómico e heteronormativo do Direito e jurisdição portuguesa. Apesar da realidade social e jurídica portuguesa ainda se encontrar longe da possibilidade do reconhecimento integral da autodeterminação e do princípio de identidade pessoal, são obras como estas que desconstruindo paradigmas estáticos de identidade, como são as que versam sobre o terceiro género ou género neutro, permite não só a construção de um conhecimento reflexivo e informado sobre a lei portuguesa como permitirá a discussão pública e política para a consagração plena do princípio de autodeterminação.

ISBN:  9789895281893 Editor: Lisbon International Press Páginas: 118


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