Simone Beauvoir

“Como pode um ser humano realizar-se dentro da condição feminina? Que caminhos lhe são abertos? Como encontrar a independência no seio da dependência? Que circunstâncias restringem a liberdade da mulher, e quais pode ela superar? São essas algumas questões que desejaríamos elucidar. Isso quer dizer que, interessando-nos pelas oportunidades dos indivíduos, não as definiremos em termos de felicidade e sim em termos de liberdade.”

Beauvoir, O Segundo Sexo (ed. Quetzal, 2015)

Setenta anos após a primeira publicação de “O Segundo Sexo” (Le Deuxième Sexe, em francês), os temas que Simone de Beauvoir (1908-1986) discute nesta icónica obra feminista do séc.XX mostram continuar a sua pertinência e debate sobre a questão ontológica feminina. Dividida em dois volumes: I – Fatos e Mitos e II – Experiência Vivida, esta obra oferece um contributo sobre o significado de ser mulher e da condição história da “fêmea” enquanto sujeito marginalizado pelo poder masculino/patriarcal.

Filósofa existencialista, Simone Beauvoir constrói uma base teórica sobre a construção de condicionamentos sociais que levam à construção de categorias como «mulher» ou «feminino», mostrando como a construção do sexismo biológico – a ideia de que a mulher por ter útero e ovários seria interior ao homem em sentido político, moral e intelectual -, determina não só o destino fisiológico, psicológico e económico da mulher como a sua alienação numa valorização da hierarquia de diferenças sexuais.

Encontrando na Dialética do Senhor e do Escravo de Engels uma alegoria útil ao entendimento da manutenção das relações de subordinação/dominação feminina em relação aos homens – o senhor aparece como a vida e o escravo como um ser para o outro -, Beauvoir critica a superioridade masculina e a construção de um mundo referencialmente masculino ao qual a mulher não é definida em si mesma mas em relação ao homem e através do olhar do homem. Assim, discorrendo sobre a dualidade “mesmo” e “outro”, desde as mais antigas mitologias e sociedades primitivas aos tempos hodiernos, a filósofa aponta como o homem é definido como “ser humano” e a mulher como “fêmea”.

“É, portanto, à luz de um contexto ontológico, económico, social e psicológico que teremos de esclarecer os dados da biologia. A sujeição da mulher à espécie, os limites de suas capacidades individuais são fatos de extrema importância; o corpo da mulher é um dos elementos essenciais da situação que ela ocupa neste mundo. Mas não é ele tampouco que basta para a definir. Ele só tem realidade vivida enquanto assumido pela consciência através das ações e no seio de uma sociedade: a biologia não basta para fornecer uma resposta à pergunta que nos preocupa: por que a mulher é o Outro? Trata-se de saber como a natureza foi nela revista através da história; trata-se de saber o que a humanidade fez da fêmea humana.”

Beauvoir (ed. Quetzal, 2015)

Nesta relação fica subentendido como o género é moldado pelas diferenças sexuais e como este se impõe à mulher, e é sempre anterior a ela, de modo a produzir formas de desigualdade que não apenas as biológicas. “On ne naît pas femme : on le deviant” ou, em português, “Não nascemos mulheres, tornamo-nos mulheres“, a frase célebre de Beauvoir que mostrava em si ser revolucionária, marcando uma transformação na reflexão em torno do género como algo performativo e socialmente construído e não naturalmente imposto pela biologia.

Ainda que marcando a teoria e pensamento feminista no séc. XX, a obra de Beauvoir mostra ser datada face ao desenvolvimento das considerações feministas contemporâneas. Vejamos. Se a autora patenteia no sexo a razão pela qual as mulheres são oprimidas, numa perspetiva fisiológica binária, descura sobre outras experiências de opressão que transcendem a biologia como a classe, raça, sexualidade, religião, capacitismo, etre outros recortes que alimentam as especificidades das mulheres e da experiência de feminilidade. A biologia não basta para explicar as formas de desigualdade de género porque o género, enquanto construção social, requer uma compreensão das formas de interseccionalidade em que se reproduz assim como da transformação das práticas e discursos que contrariem o impedimento da liberdade individual.

Ao ler esta obra percebemos a necessidade de revisitar textos antigos em que exploram as formas de exploração e marginalização social de género mas também da desconstrução de teorias feministas e representações que pensam a categoria de género de modo binário, masculino/feminino, capazes de representar um maior número de pessoas.

O Segundo Sexo, vol.s I e II, ed. Quetzal, 2015

ISBN: 9789897221934 Editor: Quetzal Editores Páginas: 416


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