Abel Botelho

“Era uma doentia obsessão, um amor estranho, dissolvente, enorme, de uma acuidade que fazia sofrer. Um misto extravagante de submissão e de império, de adoração e de lascívia, que prendia o barão àquele indivíduo do mesmo sexo por laços mais poderosos do que quantos nos serve a História como exemplos de ligação admirável entre homem e mulher. E este amor patológico não relampeava em turbulências; antes enquistara numa fixidez calma e sinistra de mania, que é a forma da paixão nos linfáticos. Antes de tudo e acima de tudo, na vida sinuosa do barão sempre lampejava agora, sobranceira a todas as preocupações e a todos os desvarios, esta paixão sindromática, pregada e fria como um luzir de espelho na penumbra.”

Abel Botelho, O Barão de Lavos (1891)

O Barão de Lavos, romance da série “Patologia Social” produzida por Abel Botelho (1855-1917), é considerada a primeira obra literária portuguesa a abordar o tema da homossexualidade. Numa época em que Portugal era ainda um país monárquico, extremamente conservador, dominado pelo clericlarismo, o tema da homossexualidade masculina e da pedofilia trazidos com O Barão de Lavos (1891) mostrariam criar o escândalo dentro dos meios mais privilegiados da época não tardando a fazer parte dos livros proibidos e apreendidos pela Igreja.

Abel Botelho, dramaturgo, poeta, guionista, cronista, crítico de arte, diplomata com carreira militar mostra um percurso de vida e profissional incomparável. Contemporâneo de Eça de Queirós, pai do neo-realismo literário português, Abel Botelho traz nas suas obras um retrato da sociedade portuguesa do séc. XIX, procurando por via da sátira e ironia descortinar temas ignorados ou romantizados pela sociedade e tradição literária. Exemplo disso são as suas obras: A Jacunda (1895), Vencidos da Vida (1892), Claudina (1890) e Imaculada (1897), comédias que foram adaptadas ao teatro e que embora o seu êxito entre os populares lisboetas viriam a ser consideradas “uma ofensa à moral pública” e apreendidas.

O Barão de Lavos segue essa tradição danosa. Junto com O Livro de Alda (1898); Amanhã (1901); Fatal Dilema (1907); e Prospera Fortuna (1910), obras da série “Patologia Social” em que o autor traz a público temas da esfera do interdito como a homossexualidade, o lesbianismo, a prostituição, o adultério, a luta de classes e os vícios de uma elite política corrupta e moralmente degradada. Temas considerados pouco queridos entre grupos dominantes a quem a escrita denunciadora e hilária de Abel Botelho mostrava ser uma afronta aos privilégios e moral social a manter, entre os quais aqueles que colocaram a homossexualidade enquanto doença patológica associada à pederastia e pedofilia e consequente “degeneração” do indivíduo.

Nesta obra conhecemos esta mesma associação, a homossexualidade enquanto doença e degeneração de um excêntrico aristocrata lisboeta, descendente de duas das famílias mais influentes do país, Sebastião Pires de Castro e Noronha, que se perdera de paixão pela beleza física de um marginalizado vendedor de rua, o eufebo Eugénio, com quem acabaria por partilhar casa e, consequentemente, sido conduzido à ruína social e económica.

O barão deu de frente então com um rapazito que vendia pastéis. Teria quinze anos. Pele morena, olho aveludado, tipo insinuante de marnoto, camisola de xadrez azul e preto, calça branca muito justa, à frente uma grande cesta vestida de oleado, em cujo interior destacavam de uma alvura de toalha várias gulodices.

(…)

Muitas vezes, depois de uma demorada cena amorosa, de tarde, com o rapaz, o barão saía combalido, esgotado, trôpego, com os nervos debilitados, o olhar dorido, a alma humilhada e sombria. Mas então, por isso mesmo que caíra fraco, o vício, longe de ser para ele, como para as organizações sadias, uma simples derivação acidental de gozo na normalidade fisiológica da sua vida, dominava-o inteiro, montava-o, torcia-o, fundia-lhe o cérebro, fazia-lhe crescer no sangue uma obsessão de fogo… e o pobre pederasta lá voltava logo à noite, poucas horas decorridas, a fechar numa segunda cena de erotismo a parentesiação do seu desejo.

Abel Botelho, o Barão de Lavos (1891)

O Barão de Lavos é ao lado de A Confissão de Lúcio, de Mário Sá Carneiro, obra inaugural da representação da homossexualidade na tradição literária portuguesa, sendo equiparada inclusive a a obras como “Lolita” (1955) de Vladimir Nabokov e “Morte em Veneza” (1971) de Thomas Mann. Ao lado de “O Crime de Padre Amaro” (1875) e os “Maias” (1888), o Barão de Lavos mostra ser um clássico da literatura portuguesa, um retrato mordaz da sociedade portuguesa na viragem para o séc. XX, sendo por isso necessário resgatar o autor das brumas da memória que o afastaram do reconhecimento merecido.

O Barão de Lavos, obra atualmente em domínio público, podendo ser consultada online, mostra agora uma nova reedição pela INDEX ebooks, editora especializada em literatura lgbtq+ em língua portuguesa, com uma coleção de “livros proibidos”. Uma leitura a não perder!

ISBN: 979-8215272930 (ebook) Editor: INDEX ebooks Páginas: 380


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