Georgina Orellano / Trad. Helena Pitta

“Durante muito tempo, quando alguém aludia àquele que é o meu trabalho há quinze anos, fazia-o usando o eufemismo da profissão «mais antiga», mas, para mim, o que a humanidade tem de mais antigo é a condenação das mulheres, das lésbicas, das travestis, das trans e das prostitutas que bem condenadas temos sido – e continuamos a ser – nesta sociedade machista e patriarcal.”

Georgina Orellano, Puta Feminista (ed. Orfeu Negro, 2023)

Estigma, silêncio e invisibilidade são três substantivos que surgem no prefácio desta obra e que abrem a leitura para um tema que é, desde sempre, alvo de divisões e disputas morais. Esse prefácio, escrito por Joana Canêdo, ativista pelos direitos das pessoas que usam drogas, co-criadora do coletivo MANAS-GAT, coletivo que trabalha com mulheres e pessoas não binárias que usam drogas e fazem trabalho sexual, antevê o projeto feminista de Orellano para problematizar a realidade portuguesa, dando conta de que se o 25 de Abril abriu caminho para o fim da clandestinidade, o trabalho sexual continua à margem desse trilho democrático.

Nas palavras de Canêdo, a criação do GAMEM/MANAS (2020), grupo de apoio mútuo entre mulheres sobreviventes a múltiplas violências, reflete a preocupação em dar respostas a problemas estruturais como o machismo, a xenofobia, a transfobia, a serofobia, a violência policial e, sobretudo, o proibicionismo em torno do trabalho sexual. Recordar que, o Movimento dx Trabalhadorx do Sexo (MTS) em Portugal, movimento que tem por objetivo a defesa dos direitos dx Trabalhadorx do sexo na sociedade portuguesa, também se fez presente no lançamento do livro de Orellano na Feira Anarquista do Livro de Lisboa.

Mas atentemos ao livro e à autora. De caráter autobiográfico, este livro conta-nos as histórias de Georgina Orellano, trabalhadora do sexo, ativista feminista e, desde 2014, Secretária-Geral da AMMAR, o Sindicato dxs Trabalhadorx Sexuais da Argentina.

Orellano, traz-nos nesta sua primeira obra, o testemunho de uma trabalhadora do sexo que renúncia a violência institucional e a precariedade de quem exerce trabalho sexual. Entre o longo caminho da vergonha e o despertar da sua consciência política, a autora alerta para os principais desafios dx trabalhadorx sexuais, entre os quais a sua integração nos movimentos feministas cujas facções continuam a retirar autonomia dos corpos dissidentes, não bináries, mulheres e homens trans, das putas que, também, ou sobretudo, enfrentam e resistem à violência machista e patriarcal.

Um breve parêntesis, a palavra puta é aqui reclamada enquanto sujeito político contra o estigma e perseguição patriarcal e não um insulto ou castigo de qualquer mulher que escapa à norma. Tentemos dar continuidade à resignificação desta palavra tal como o fizemos com “Queer”.

Acerca da relação óbvia entre o feminismo e a luta dxs trabalhadorxs sexuais, Orellano conta-nos como a sua experiência nem sempre foi pacífica tendo inclusive distanciado de encontros e conversas com feministas abolicionistas e institucionalizadas – organizações feministas com apoio estatal para impulsionar determinadas políticas públicas – onde os seus discursos e posições separatistas entre “sexualidades boas e más”, “sexos puros e impuros”, mostravam, e continuam a mostrar, um impedimento à autodeterminação, integridade e segurança dxs trabalhadorxs sexuais.

“(…) como diz o ditado feminista: ninguém volta na mesma depois de ter lá estado. Foi exactamente o que aconte-ceu. Não voltei na mesma. Regressei a odiar o feminismo e, con-sequentemente, todas as feministas. Senti que as putas tinham dois inimigos: a polícia, por um lado, e as feministas, por outro.

(…)

Aquele encontro foi uma experiência amarga. Tantos cartazes a denunciar a violência de género e a exploração capitalista, a falar do respeito pela autonomia dos corpos, mas xs trabalha-dorxs sexuais não tinham direito a um espaço para enunciarem as suas reivindicações e darem a conhecer as suas exigências.”

Georgina Orellano, Puta Feminista (ed. Orfeu Negro, 2023)

A consciência interseccional de Orellano, entre a luta de classes, de género, raça e sexualidade, está presente do princípio ao fim desta obra e, como seria de esperar, do resultado sua própria luta e experiência feminista. Orellano mostra como através do sindicalismo e da consciência da vulnerabilidade que xs trabalhadorxs do sexo estão sujeitxs resulta uma solidariedade e sororidade “puteril”. Mediante códigos de rua, a partilha de experiências com clientes a evitar ou mesmo da proteção contra a perseguição e suborno policial que é partilhada e legada entre si, somos remetidos às particularidades de como o mundo dxs trabalhadorxs do sexo é vivido.

Orellano oferece-nos neste livro um exemplo de como as lutas são interseccionais e dependem de si, devendo escutar e incluir todas as pessoas em prol do bem comum e não do sacrifício daquelas em situação de marginalidade. Entre argumentos proibicionistas que defenderem a criminalização do trabalho sexual e outros adeptos à sua regularização, percebemos que ao recusar ouvir xs trabalhadorxs sexuais, as suas experiências, necessidades e reivindicações, os feminismos de estado continiarão a perpetuar condições de insalubridade dxs trabalhadorxs sexuais, assim como num modelo de sociedade que continua a dividir e a marginalizar quem não reflete os tradicionais padrões morais.

Dotada de uma forte consciência política e sindical, Georiga Orellano termina o último capítulo deste livro, “CV de uma Puta”, com uma provocação que não podia de deixar de partilhar e que vos apelo à reflexão:

“Do que também tenho a certeza é de que trabalhar no que quer que seja é uma merda, mas de alguma coisa temos de viver e a precariedade não pode ser o destino; nem a violência institucional e a punição, a resposta estatal ao trabalho sexual.

Vivemos num mundo onde de qualquer modo temos de nos prostituir, como diria Virginie Despentes. No sistema capitalista cada qual se prostitui como pode e eu decidi fazê-lo desta maneira.

Todxs nos prostituímos.

E vocês, quanto cobram por hora?”

Mordaz, esta é uma leitura essencial ao que não devem perder.

Puta Feminista: Histórias de uma Trabalhadora Sexual | TEDTalks (2019)

ISBN: 9789899071803 Editor: Orfeu Negro Páginas: 264

Este texto foi publicado originalmente no site de notícias dezanove.pt.


Uma resposta a “Puta Feminista: Histórias de uma trabalhadora sexual”

  1. Avatar de À Conversa sobre Livros com Joana Canedo – LeiturasQueer

    […] apresentámos Puta Feminista na Casa do Comum, as Manas, o MTS, a Casa T desvelaram que não temos, afinal uma só voz, porque […]

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