Filipa Martins

Já que o coito – diz Morgado –
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino;


e cada vez que o varão
sexual petisco manduca,
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.


Sendo pai só de um rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou – parca ração! –
uma vez. E se a função
faz o órgão – diz o ditado –
consumada essa excepção,
ficou capado o Morgado.

Em 3 de Abril de 1982, na Assembleia da República debatia-se a despenalização do aborto.
O então deputado  do CDS, João Morgado, argumentou: “O acto sexual é para ter filhos”.
Natália Correia, (na altura deputada eleita pelo PPD) subiu à tribuna para responder
com um poema muito original. As gargalhadas obrigaram à interrupção dos trabalhos.

30 anos depois da sua morte, no centenário do seu nascimento, Filipa Martins traz-nos uma nova biografia daquela que seria a autora mais censurada durante o regime do Estado Novo, mas também no pós-25 de abril com as suas polémicas considerações sobre o PREC.

Natália Correia foi uma mulher polissémica. Ensaísta, romancista, cronista, jornalista, poetisa, dramaturga, fez da liberdade uma luta constante e das suas palavras a ferramenta radical para levar os seus princípios adiante. Figura polémica da vida literária e política do séc. XX, vítima de efabulações e de mitos, incompreendida por muitos e amada por poucos, Natália transgrediu com a palavra escrita e recitada em temas vários como o papel da mulher, a representatividade, a cultura, o país, a vida e a morte.

Versando sobre a excecionalidade do espírito e pessoa de Natália Correia, Filipa Martins decide aceitar o desafio da editora Contraponto e redescobrir a pensadora, tendo nos últimos seis anos feito um trabalho de investigação e de escrita que não só a torna numa exímia “natalióloga” como uma entendida na história contemporânea do país entre a ditadura do Estado Novo e o começo da democracia.

Escritora de romances premiados como Elogio do Passeio Público (2008), Quanta Terra (2009),  Mustang Branco (2014) e Na Memória dos Rouxinóis (2018), guionista da série histórica 3 Mulheres, da RTP, que narrava o papel da editora Snu Abecassis, da jornalista Vera Lagoa e Natália Correia no enfrentamento ao Estado Novo, a autora acrescenta agora com O dever de deslumbrar (2023), a vida e obra de uma das figuras portuguesas mais excecionais do séc. XX, a uma  série de biografias da mesma chancela que reúne nomes célebres como Agustina Bessa-Luís, Manoel de Oliveira, José Cardoso Pires e Manuel António Pina.

Dividida em oito capítulos principais, organizados cronologicamente em décadas, acompanhamos desde o nascimento da autora em Fajã de Baixo (São Miguel), em 1923,  até aos seus últimos dias na Rodrigues Sampaio, nos anos 90, o desenrolar de uma vida que se desdobrou em várias na busca de horizontes maiores. Entre a figura de um pai ausente a uma educação feminina pouco convencional para a época, de um casamento abusivo ainda em tenra idade até à sua polémica separação, encontramos nesta biografia alguns dos principais desafios do papel feminino no Estado Novo e ao embate da artista contra a censura e aos maniqueísmos do regime que a levariam desde cedo a estar sob a mira e faro da polícia política – PIDE.

Como não poderia deixar de ser, encontramos nesta obra o escândalo e a perseguição que as suas obras foram alvo, a sua condenação com pena suspensa em 1966 pela publicação da «Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica», antologia que reunia toda “a poesia maldita dos nossos poetas”, do seu encontro com o grupo surrealista português entrosando-se a nomes como Mário Cesariny, Almada Negreiros ou Cruzeiro Seixas, ou ainda a fundação do bar “Botequim”, ponto de reunião da elite intelectual e política nas décadas de 1970 e 80 em Lisboa, local onde se carpiram mágoas da liberdade traída pelas noites fora, “recanto onde madrugada fora se improvisavam e desfaziam governos”.

Militante antifascista, feminista que se pautou pela despenalização do aborto, defensora do espírito crítico e insubmisso, foram várias as lutas por que Natália Correia enquanto mulher, intelectual, escritora e deputada da Assembleia da República se debruçou. Uma das últimas, já em 1992, ano anterior ao da sua morte,  foi a formação da Frente Nacional pela Defesa da Cultura contra aplicação de IVA aos livros colocados no mercado e as medidas de “censura económica” do Governo de Cavaco Silva e dos seus secretários de Estado para a Cultura – Santana Lopes e Sousa Lara. Uma luta que não viria em si o desfecho idealizado pela escritora.

Esta é uma biografia imperdível de uma mulher visionária, de um génio sem pudores, de uma poética sem fonteiras que Filipa Martins nos traz com grande louvor e talento.

Sinopse de “O Dever de Deslumbrar”:

Intimidando pela verve de aríete e pela beleza, Natália Correia simbolizou, como poucos, as inquietações do século XX português. Precoce e radical no pensamento feminino, vítima de efabulações e de mitos, incompreendida e amada, lançou um olhar oracular sobre o seu tempo. Em tertúlias, que eram verdadeiras olimpíadas da confraternização lisboeta, o seu traço aglutinador envolvia, juntamente com o fumo dos cigarros, intelectuais e admiradores, que se irmanavam com párias e malditos em ideias e poemas de vanguarda. Mulher deslumbrante e carismática, equiparada às maiores pensadoras europeias e às estrelas de Hollywood, atacou o Regime onde mais lhe doía – na moral caduca -, elegeu o erotismo como arma política e tornou-se a autora mais censurada da ditadura. Já no bar que fundou em Lisboa, fez e desfez governos à batuta da sua boquilha. Nesta biografia, da autoria de uma das vozes mais seguras da nova literatura portuguesa, convivem a libertária e a conservadora, avessa a expor a sua atribulada vida íntima, a mulher que desprezava a política partidária e que nela viveu, inclusive como deputada; o espírito frágil e o temperamento intempestivo; o polémico exercício de funções diretivas em órgãos de imprensa e a defesa intransigente das causas maiores; e, em todas as páginas, as contradições e coerências de uma pensadora capaz de criar para si própria uma narrativa que não a torturasse pelas escolhas que fez.”

ISBN: 9789896661762 Editor: Contraponto Editores Páginas: 696

Este texto foi publicado originalmente no site de notícias dezanove.pt.


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