“As bruxas sempre foram mulheres que ousaram ser corajosas, agressivas, inteligentes, inconformistas, curiosas, independentes, sexualmente libertas, revolucionárias. A Bruxa vive e ri em cada mulher. Ela é a parte livre de cada uma de nós. Tu és uma Bruxa porque és uma mulher, indomável, zangada, alegre e imortal”.

Silvia Federici, Calibã e a bruxa (ed. Orfeu Negro, 2020)

Há uma parte da história das mulheres que todos os anos ouvimos falar mas que na verdade não conhecemos em profundidade. E não a conhecemos porque ela foi e é intencionalmente escondida e negada por aqueles que contam e escrevem a “verdadeira” história. Esse período da história tem o nome de “caça às bruxas”.

A “caça às bruxas” durou mais de quatro séculos e ocorreu, principalmente, na Europa, iniciando-se em 1450 e tendo o seu fim somente por volta de 1750, período de grandes mudanças sociais no continente Europeu. A nova conjuntura política e económica europeia gerou instabilidade e descentralização do poder tendo para isto ajudado um período de fortes guerras, cruzadas, pragas e revoltas camponesas, no qual se procuravam bodes expiatórios e motivos para as instituições de poder encontrarem novos alvos de perseguição: as bruxas.

O fenómeno da caça às bruxas assumiu diferentes formas, dependendo das regiões em que ocorreu, porém, não perdeu a sua característica principal: uma massiva campanha judicial realizada pela Igreja e pela classe dominante – os chamados “Tribunais da Inquisição” ou “Tribunais do Santo Ofício”-, contra as mulheres dos meios rurais.

Mas quem eram, afinal, estas mulheres que fizeram parte de um capítulo tão horrendo da história da humanidade, e por que é que o feminismo retoma as bruxas como um dos seus principais símbolos?

As mulheres acusadas de bruxaria eram as parteiras, as hereges que evitavam a maternidade, as mendigas que ousavam viver só e que ganhavam a vida furtando os seus vizinhos, as promíscuas libertinas que ousavam praticar a sua sexualidade fora dos vínculos do casamento e da procriação, em suma, aquelas que ameaçavam a racionalização do processo de trabalho e a reprodução dentro dos moldes patriarcais.

As bruxas eram também as curandeiras que conheciam e entendiam sobre o uso de plantas medicinais para curar doenças e epidemias nas comunidades em que viviam. Portadoras de um elevado poder social, estas mulheres eram, muitas vezes, a única possibilidade de atendimento médico entre pessoas mais desfavorecidas. Aprendiam o ofício umas com as outras e passavam esse conhecimento de geração em geração, para as suas filhas, vizinhas e amigas.

Acusadas de realizarem “pactos com o demónio”, de praticar crimes sexuais contra os homens, as vítimas eram também culpadas por se organizarem em grupos – geralmente os que se reuniam para partilhar conhecimentos acerca de ervas medicinais, para conversar sobre problemas comuns ou notícias. Outra acusação levantada contra elas, era de que possuíam “poderes mágicos”, os quais provocavam problemas de saúde na população, problemas espirituais e catástrofes naturais.

Os estereótipos das bruxas começaram a ser difundidos de forma a criar uma histeria generalizada na população, sendo estas caracterizadas, principalmente, por mulheres de aparência desagradável ou com alguma deficiência física, idosas, mentalmente perturbadas, mas também por mulheres bonitas que haviam ferido o ego de poderosos ou que despertavam desejos em padres celibatários ou homens casados. Estereótipos que ainda hoje perduram, sendo que, quando alguém usa a palavra bruxa, é normalmente usada de forma depreciativa, relacionando a feminilidade com a histeria, a loucura, a feitiçaria e as práticas para fazer o mal que devem ser castigadas.

Como procedimentos de tortura eram frequentemente escolhidos: a depilação integral do corpo em busca de marcas do diabo, que podiam ser verrugas ou sardas; a perfuração da língua; banhos de água quente; tortura em rodas; perfuração do corpo com agulhas; tareias; violações com objetos cortantes; decapitação dos seios, e claro a queima de corpos femininos em praça pública.

A intenção era torturar as vítimas até que estas assinassem confissões preparadas pelos inquisidores, responsáveis pela manutenção da ordem patriarcal e das doutrinas cristãs.

Estima-se que aproximadamente 9 milhões de pessoas foram acusadas, julgadas e mortas num período de construção de uma nova ordem patriarcal que se preocupou ferozmente em controlar os corpos das mulheres, o seu trabalho e as suas atividades sexuais, transformando-as em recursos económicos e, praticamente, propriedades do Estado.

A caça às bruxas tratou-se de um verdadeiro genocídio contra o sexo feminino, com a finalidade de manter o poder da Igreja e punir as mulheres que ousavam manifestar a sua autonomia, os seus conhecimentos médicos, políticos ou religiosos. Nas suas obras, a historiadora e feminista italiana, Silvia Federeci, constantemente desmistifica a chamada “Idade das Trevas” – a Europa do Renascimento e a Alta Idade Média – e enfatiza que nesse período, na verdade, foi marcado por determinada autonomia e união das mulheres, que estavam frequentemente juntas — fosse no trabalho no campo ou no ambiente em que eram feitos os partos. No entanto, este período da História das Mulheres foi e continua a ser recorrentemente deslocado pelas narrativas dominantes, tendo sido trazido recentemente por historiadoras e feministas, como Anne Barstow ou Silvia , na sua construção de novas epistemologias que vizibilizem o feminino enquanto sujeito social e a tentativa de monopolização da história pela lógica falo-logo-cêntrica.

Neste sentido, Fedirici na sua obra “Calibã e a Bruxa: as mulheres, o corpo e a acumulação original“, partilha:

Mas só o movimento feminista conseguiu fazer sair da clandestinidade a caça às bruxas, graças à identificação das feministas com as bruxas, rapidamente adoptadas como símbolo da revolta das mulheres. As feministas rapidamente reconheceram que centenas de milhares de mulheres não poderiam ter sido massacradas e sujeitas às mais cruéis torturas se não tivessem desafiado a estrutura do poder. Percebemos também que esta guerra contra as mulheres, que se prolongou por um período de pelo menos dois séculos, constituiu um ponto de viragem na história das mulheres na Europa.“.

Ainda, diz-nos que:

a bruxa já não existe, mas os seus medos e as forças contra as quais lutou durante a sua vida permanecem. Podemos abrir os nossos jornais e ler as mesmas acusações contra o lazer dos pobres. Os expropriadores vão para o Terceiro Mundo, destruindo culturas através da pilhagem dos recursos da terra e das pessoas. De facto, se ligarmos a rádio, podemos ouvir o crepitar das chamas. A luta continua.

As bruxas do passado são as mesmas que abriram o caminho que hoje nos permite fazer ouvir mais alto a nossa voz, cada vez mais firme contra a lógica patriarcal, colonialista, capitalista, transfóbica que nos tenta oprimir e apagar da vida social. A restauração da imagem das bruxas está hoje a ser feita como campo de luta, conhecimento e de insubordinação contra o patriarcado, o colonialismo, o capitalismo que guiam a construção das subjetividades na contemporaneidade. As novas bruxas estão a desobedecer, a transgredir, a reinventar os moldes com que se constrói o género, a sexualidade e as identidades, rompendo com as amarras do passado.

Somo, todas/os/xs, as netas das bruxas que vocês não puderam queimar.

As feministas devem reivindicar a imagem da bruxa? | SILVIA FEDERICI

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