Alegorizações: Quase nada na vida é apenas o que parece

Jan Morris / trad. Raquel Mouta

“Há muitos, muitos anos, eu e a minha Elizabeth perdemos uma filha, apenas com algumas semanas de idade, que se chamava Virginia. Pouco tempo depois, a minha dor foi parcialmente mitigada pela chegada de alguém que a substituiu, por assim dizer, na pessoa da sua irmã mais nova, a Suki, alegre como um carrossel e um deleite para mim desde então. Não obstante, para mim foi sempre uma tristeza nunca ter sabido como seria a Virginia, e na velhice, sentindo insinuar ‑se a mortalidade, decidi escrever à minha filha uma série de cartas de nobres intenções, à semelhança das que Lorde Chesterfield dirigiu ao filho. No entanto, quanto mais pensava no projecto, mais sentencioso me parecia, e mais eu duvidava das minhas competências para o escrever. “

Jan Morris, Alegorizações (ed. Tinta da China, 2023)

A escritora Jan Morris escreveu mais de 40 livros durante a sua vida. Mas não foi só isso que Morris viveu ao longo dos anos. Soldado, jornalista, historiadora, viajante, Morris teve uma vida extraordinária e presenciou muitos acontecimentos históricos, como a primeira escalada do Evereste ou a Revolução Cubana. Agora, em Alegorizações , livro publicado a título póstumo – a seu pedido -, a autora partilha os significados e as alegorias que foi identificando em momentos marcantes da sua vida, os testemunhos de uma das maiores cronistas e viajantes que o século XX conheceu.

Com perto de noventa anos, sentindo os indícios da mortalidade, Jan Morris decide embarcar numa viagem literária totalmente nova. Começando por escrever uma série de cartas dirigidas à sua falecida filha – ao estilo de Lord Chesterfield a dirigir-se ao seu filho – rapidamente se transformou num pot-pourri de mini-ensaios e reminiscências vibrantes, organizadas em torno de experiências tanto majestosas como mundanas, desde viajar pelo mundo com a sua companheira de toda a vida, Elizabeth, a espirrar e beijar e simplesmente envelhecer. Neste livro encontramos por isso temas diversos como viagens, arte e história, sendo que a cada um dos temas se somam outros ocultos na sua consciência.

Assim, Alegorizações surge como uma obra de despedida. Com ensaios escritos em grande parte no início do século XXI, antes ou no ano de 2009, a obra eflecte, acima de tudo, a convicção inabalável de Morris de que nada é apenas o que parece. De facto, segundo Morris, até a vida – todo o enigma da existência – é uma longa e majestosamente impenetrável alegoria.

Levando-nos desde a colónia hippie separatista de Bolinas, na Califórnia, até ao seu país natal, o País de Gales, e apresentando-nos tanto a sherpas nepaleses como a idosos frequentadores de cruzeiros, Morris segue a linha da alegoria ao longo das suas obras. Num ensaio, critica a falta de alegria da maturidade (“Maturidade! Alguma vez um coração vibrou com o seu som, menos ainda com o seu significado?”) e, noutro, critica o absurdo da nacionalidade. Com a sua verve caraterística, faz odes ao assobio e à maldição, aos gatos e aos pontos de exclamação.

As viagens de Morris são a âncora da coleção, uma vez que ela revisita os cenários icónicos das suas obras anteriores levando-nos a recordar também as viagens literárias que partilhamos com ela, como Conundrum: História da Minha Mudança de Sexo. Sentamo-nos com Morris a bordo do famoso Expresso do Oriente, dos comboios de metro que passam pelos arredores de Londres. Caminhamos pelo sopé dos Himalaias – onde Morris entrou em cena com a sua reportagem no local da primeira subida do Evereste – e reflectimos sobre o fascínio picaresco de Tournus, uma cidade dicotomizada em França onde uma França, com todos os vestígios de privilégio, parece beijar outra.

Íntimo e luminosamente sábio, este livro é tanto um testemunho das virtudes de abraçar a vida como um testemunho da sua encantadora, indignada e sempre surpreendente autora.

Nesta sua última obra, a escrita de Morris é erudita como sempre.

ISBN:  978-989-671-748-3 Editor: Tinta da China Páginas: 224


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