A leitura é, provavelmente, uma outra maneira de estar num lugar, escreveu o Nobel da literatura portuguesa, José Saramago.

Fonte inesgotável de conhecimento e prazer,  poderosa ferramenta de influência e transformação política, a leitura e a liberdade intelectual chegam até a ser censuradas por regimes repressivos, ditatoriais e totalitaristas, levando a que a informação, o espírito crítico sejam negados a grande parte das pessoas. 

Em pleno século XXI, assistimos cada vez mais a discursos de ódio, à propagação do medo e de conteúdos de desinformativos quanto a questões de género e sexualidade. Na Europa, EUA, Brasil e um pouco por todo o mundo, assiste-se à criação de campanhas de proibição de livros de temática LGBTQIA+. Com base em justificações de “promoção da homossexualidade” ou da “propaganda da ideologia de género”, grupos ideológicos conservadores mostram atentar a autodeterminação, a liberdade de expressão, a autodescoberta e visibilidade das experiências de pessoas LGBTQIA+.

Recordando a célebre frase de Oscar Wilde, preso numa altura em que a homossexualidade era considerada como vício e decadência, diria: “Não existem livros morais ou imorais. Os livros ou são bem escritos ou não.”

Reconhecendo a importância da leitura e da educação para as temáticas de igualdade e não discriminação, pretendemos conhecer as estantes Queer e Feministas de algumas personalidades portuguesas. De forma a partilhar novos mundos que os livros encerram, questionamos:

És co-organizadora do coletivo Manas/ GAT, pode-nos falar um pouco deste projeto, como surgiu e a que se dedica?

Somos um colectivo de mulheres, mulheres trans e pessoas não-binárias que experienciamos múltiplas vulnerabilidades, entre elas, algumas de nós usamos drogas e/ou somos trabalhadoras de sexo, em situação muitas vezes de sem abrigo e sem teto, reunimos todas as semanas na Sirigaita, um espaço de associativismo, tolerância e diversidade. Algumas de nós somos também trabalhadoras do sexo e ainda temos trabalhos precários e/ou dificuldades de acesso aos cuidados de saúde, nomeadamente do âmbito sexual e reprodutivo.

Queremos desde a autogestão, apoio mútuo entre todas e a solidariedade reduzir as múltiplas violências a que sobrevivemos e também lutar contra o machismo, o racismo, a transfobia, a serofobia e a xenofobia como problemas culturais e sistémicos. Temos o sonho de criar em conjunto um espaço mais seguro, aberto 24h, para mulheres, entre nós mesmas. Através da educação não formal e de práticas artísticas temos vindo a denunciar temas de violência estrutural, aproximarmos dos recursos especializados, posicionar nos sobre a regulação do trabalho sexual e políticas de drogas.

Com as nossas Fanzines, mostramos os nossos sonhos e declaramos as injustiças e sobre-vivências que nos atravessam e que prontamente indicam os nossos direitos: à vida, às maternidades, à habitação e ao amor. Reivindicamos, múltiplas vezes, no espaço público, o acesso universal aos cuidados de saúde e bem-estar para todas as companheiras, não esquecendo as que estão presas. Destas reuniões do coletivo criamos um espaço de autocuidados, fomentando laços que procuram cobrir as necessidades básicas, mas também criar momentos de ativismo e empoderamento entre todas.

Em janeiro de 2021, na sequência do documentário “Seis Mulheres, Uma Semente” de Larissa Lewandoski (2021, 31’51) e produzido por mim, em pleno contexto pandémico, implementámos um espaço mais seguro semanal, orientado por práticas artísticas e de bem-estar. Inicialmente apoiado pelas práticas comunitárias e a bolsa de emprego e formação do Programa de Consumo Vigiado Móvel da cidade de Lisboa e pela Rede Europeia de Pessoas que Usam Drogas, descobrimos a necessidade e vontade de juntar mulheres sobreviventes a múltiplas vulnerabilidades que também usam drogas e/ou fazem trabalho sexual. 

O principal ponto em comum entre as mulheres que quiseram participar e ser pagas para terem a oportunidade de contar as suas histórias foi o facto de terem de lidar com a violência múltipla a o desejo de Ação Direta em conjunto: o primeiro denominador comum foram, então, as sobrevivências.

Outro dos objetivos primeiros, passou também por desenvolver dinâmicas que instiguem o debate sobre as agendas da igualdade de género, políticas de drogas, e trabalho sexual, e não discriminação em função da deficiência, raça, origem étnica, religião ou crença, idade, orientação sexual e outras interseccionalidades que envolvam as mulheres jovens e mulheres mais velhas também trans e não bináries.

Compreendendo as dificuldades no acesso à saúde, nomeadamente do âmbito sexual e reprodutivo, estas reuniões começaram também por promover oficinas com temas relacionados à saúde da mulher (redução de danos no uso de drogas e trabalho sexual, prazer, apoio jurídico, entre outros, não descurando do cuidado informado do trauma).

Foi ainda possível desenvolver uma prática de mindfulness baseada na redução do stress com base na atenção plena (MBSR) como método para (re)descobrir a paz, focalizar a consciência, aliviar a ansiedade causada pelo uso de drogas psicoactivas, apoiar o envolvimento e permitir a expressão mais completa e autêntica da vida. Outras atividades foram implementadas como improvisação, pintura, performance, sempre de acordo com as aspirações e vontades das participantes no grupo (entre 7 e 12 mulheres se juntam todas as semanas e não são necessariamente sempre as mesmas).

Em retrospetiva, penso que desenhámos um movimento social entre mulheres que usamos drogas e/ou fazemos trabalho sexual que não é uníssono e desde as experiências diferentes, histórias e trajetórias individuais é possível co-construir futuros desejáveis que partem das nossas narrativas e da re-existência quotidiana e com um denominador comum: a dignidade no exercício do trabalho sexual, a não discriminação resultante da clandestinidade e espaços de trabalhos mais seguros ou ainda uma linha de apoio disponível para TS, 24h, propondo a gestão e mediação das múltiplas violências a que as trabalhadoras estão expostas.

Quando apresentámos Puta Feminista na Casa do Comum, as Manas, o MTS, a Casa T desvelaram que não temos, afinal uma só voz, porque somos muitas corpas, ideias e experiências vivas que nos aproximam num formato de resistência, muitas vezes com opiniões políticas divergentes. E tudo bem com isso, porque o principal é dar voz, envolver e radicalizar mas não apagar nenhuma existência.

Quais para ti são os principais desafios que trabalhadorx do sexo enfrentam em Portugal?

Podemos recorrer ao prefácio da Puta Feminista para perceber a complexidade do que é ser trabalhadorx do sexo em Portugal. Não te podes coletar, não tens um sindicato que te represente, não tens acesso a lugares seguros para trabalhar principalmente se atentarmos que há diferentes vertentes no exercício da profissão, aos quais se associam diferentes riscos:

No âmbito legal, o artigo 169.o do Código Penal Português impede o vínculo contratual, isto é, um contrato de trabalho enquanto profissional do sexo. Este facto deixa xs trabalhadorxs desprotegidxs – não têm direito a férias, subsídio de doença ou licença parental – e sem a possibilidade de contribuir para o Estado, através de impostos e outras tributações. Outro aspecto relevante é o facto de o lenocínio ser crime. Os abolicionistas dirão que o lenocínio facilita a prostituição, mas quem exerce trabalho sexual falará dos abusos a que estão sujeitxs por esta facilitação não ser despenalizada. Por consequência, é também ilegal o cooperativismo entre trabalhadorxs do sexo, bem como a promoção da sua própria segurança. Nega-se, portanto, o direito ao associativismo e à partilha de espaços mais seguros de trabalho. Imaginemos que companheirxs de trabalho decidem arrendar um apartamento para criar um local de trabalho comum: a pessoa titular no contrato pode ser acusada de lenocínio, mesmo recebendo dxs restantes trabalhadorxs uma renda mensal fixa e previamente acordada.

Puta Feminista (ed. Orfeu Negro, 2023)

Ora, entre o Código Penal, o crime de lenocínio, a falta de espaços ou oportunidades de associativismo/ sindicalismo, à desproteção das pessoas que fazem trabalho sexual, acrescentamos o estigma e a discriminação como principais problemas. Na verdade, uma das razões que formámos as Manas em contexto pandémico foi porque as mulheres que trabalham no Intendente estavam visíveis mais do que nunca e onde a polícia não nos protege e onde os episódios de violência eram cada vez mais notados, as reuniões semanais surgiram como um elo de religação entre sobreviventes, aliviando os fatores de escassez e competição que se faziam sentir nas ruas. A nossa visão ideal seria a concretização de um espaço mais seguro para todas onde fosse possível estabelecer uma cooperativa/associação entre trabalhadoras dos sexo e que incluísse também – tendo como fio condutor a redução de riscos, a autogestão e a saúde sexual e reprodutiva, e assegurar redução de riscos no âmbito do exercício laboral e outras práticas. Por outra parte, a clandestinidade é um facto quando nos continuam a olhar como sujeitos pacíficos na construção d’a política.

Considerando que em Portugal temos um feminismo de estado qual o suporte feminista e institucional xs trabalhadorxs sexuais no país?

Lembro-me sempre de uma conversa que realizámos com as Manas na Sirigaita, apoiada pelo Agência Europeia das Drogas, no contexto do 25 de Novembro de 2022 – Dia da Eliminação da Violência contra as Mulheres, que me relembra um discurso particular em que uma das participantes explicava os diferentes níveis de vulnerabilidade das trabalhadoras sexuais. Nas Manas conseguimos chegar sobretudo às mais desapoiadas e que enfrentem uma precariedade acrescida bem como exposição a episódios de violência de género: em situação de rua e que também usam drogas, às mulheres reneganadas e violentadas que sobretudo demonstram marcas de sobrevivência.

O movimento dx trabalhadorx do sexo é um movimento interseccional?

O MOVIMENTO É INTERSECCIONAL SIM, PORQUE NÃO DESCURA DE OUTRAS CAUSAS. AS TRABALHADORAS MIGRANTES, AS MÃES SOLTEIRAS TRABALHADORAS PRECÁRIAS, AS TRABALHADORAS DE RUA, AS TRABALHADORAS QUE SÃO CRIMINALIZADAS E ESTIGMATIZADAS DE OUTRA FORMA, AS QUE DE NÓS VIVEM COM VIH E TODAS AS MAIS JOVENS, DE IDENTIDADES DIVERSAS, NOMEADAMENTE TRANS E NÃO BINÁRIES.

As Manas procuram a mesma consciência interseccional que Orellano revela nas suas páginas: entre a luta de classes, de género, raça e sexualidade, a intersecção entre os feminismos e as ruas, no radical comum que partilhamos com outras lutas vizinhas como a da habitação e direito à ocupação, anti-racismo, e a liberdade que nos caracteriza, pois chegados os 50 anos de abril, ainda hoje a moral os bons costumes nos assombram. Estar na Sirigaita permitiu-nos também relançar elos com outros movimentos e marchar em conjunto com as “Coletividades em Luta”.

Que alianças existem?

As Manas que são um colectivo apoiado pelo GAT têm aliança com vários outros coletivos: a nossa casa Sirigaita, as Insurgentes (livreiras e bibliotecárias do Intendente), o Plano Aproxima, o Movimento dxs Trabalhadores do Sexo, a Plataforma 8M e Greve Feminista. Outros coletivos como a Rede 8 de Março também se têm aproximado ao debate sobre trabalho sexual e identidades trans, trabalhamos sempre com todas as companheiras que de nós se queiram aproximar, sem julgamentos: a nossa identidade não é a nossa fraqueza, mas a nossa força! O movimento é um lugar aberto e dialógico “só não aceitamos quem não nos tolera”, recordo de um manifesto por nós escrito a 8 de março de 2021.

Importante é percebermos que todes somos feministas e que os feminismos são diversos: todas temos direito a estar vivas e ser cidadãs de pleno direito. Imaginem quanto a clandestinidade não nos contínua a empurrar para lugares obscuros e violentos e é por isso que precisamos de todas as alianças neste movimento.

Após o recém lançamento do livro Puta-Feminista, livro que prefacias, gostarias de partilhar connosco outra obra que verse sobre o tema e que nos abra horizontes sobre a realidade dx trabalhadrx do sexo?

Ler Orelleano é perceber como a organização sindical de AMMAR e o encabeçamento da luta por mulheres com experiência vivida é um alento de âmbito na construção da política contemporânea. Do “lugar de fala” como diria Djamila Ribeiro, nascem relatos tão fundamentais e histórias inspiracionais como a da Georgina. Neste sentido, ler Puta Feminista, relança-nos o pensamento local: em contextos jurídico-legais que têm bastantes semelhanças (Portugal e Argentina), deixa-nos sonhar com potenciais reinvenções do movimento e criação de um sindicato, potenciando as colaborações organizativas e a entre-ajuda como frente comum também dos feminismos.

Que leitura te acompanha de momento e gostarias de recomendar aos nossos leitores?

De momento estou a ler um livro de Anne Coppel, Malika Amouche e Lydia Braggiotti “Le Bus des Femmes Prostituées, histoire d’une mobilisation que retrata o primeiro projeto de investigação-ação em Paris nas ruas dos 90s como Saint Dennis, local de trabalho de TS e também que aborda entre outras coisas a importância do uso do preservativo, a distribuição de seringas e perspetivas para o que viriam a ser parte do primeiro autocarro de redução de riscos, em Paris, entre 1990 e 1996 e propestivar as atuais lutas e interseções dos 2000s: as TS parte do estudo escrevem cartas que sublinham o direito de amar, o direito das mulheres que usam drogas serem incluídas na transversalidade dos direitos das trabalhadoras do sexo, a importância da saúde sexual e reprodutiva no desenho de serviços inovadores de redução de danos, que não excluam, a obrigação de ouvir as comunidades afetadas, o direito à vida e o enfoque nas questões sociais e interseccionais, como a migração.

Também estou a ler “We are infecting people with activism” Oral Histories of European HIV/AIDS Activists, editado por Agata Dziuban e Todd Sekuler, onde entre outras entrevistas encontramos a experiência vivida e a ciência aliada ao ativismo dos nossos dias – para o melhor conhecermos é inevitável el uma perspetiva histórica e de quem afinal presenciou a construção desses movimentos sociais desde os anos 80s/90s do século XX.

Joana é activista pelos direitos das pessoas que usam drogas. Faz parte do Comité Executivo da EuroNPUD (Rede Europeia de Pessoas que Usam Drogas) e do coletivo MANAS – Grupo de Apoio Mútuo entre mulheres Sobreviventes a Múltiplas Violências. Desde 2014 estudiosa de políticas de drogas, Joana está a trabalhar com mulheres e pessoas não binárias que consomem drogas. Anteriormente parte da equipa de coordenação do espaço Metzineres em Barcelona, tem vindo a especializar-se trabalhar a partir da interseccionalidade para alcançar políticas públicas eficientes, concentrando-se especialmente em abordagens de base e dedicando-se a promover iniciativas lideradas por pares, tais como espaços auto-geridos para mulheres que consomem drogas e que fazem trabalho sexual. Interessada na investigação orientada para a inclusão das comunidades na concepção e implementação e monitorização de programas inovadores, vê como um instrumento valioso a intersecção entre a cultura e o social, as práticas artísticas e o artivismo, a rua e a poesia. Joana tem uma licenciatura em Ciência Política e Relações Internacionais e Mestre é mestre em Economia e Políticas Públicas. Atualmente é bolseira FCT e frequenta o PhD em Development Studies, no ICS-IUL.


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