A Doença como Metáfora e A Sida e as Suas Metáforas

Susan Sontag

“A DOENÇA É O LADO SOMBRIO DA VIDA, uma cidadania bem pesada. Ao nascer, todos nós adquirimos uma dupla cidadania: a do reino da saúde e a do reino da doença. E muito embora todos preferíssemos usar o bom passaporte, mais tarde ou mais cedo cada um de nós se vê obrigado, ainda que momentaneamente, a identificar-se como cidadão da outra zona. O meu propósito não é tanto descrever o que significa realmente emigrar para o reino da doença e aí viver, mas antes as fantasias punitivas ou sentimentais que se constroem acerca dessa situação: não uma geografia real, mas antes estereótipos de carácter nacional. O meu tema não é a doença física em si, mas o uso que se faz da doença como figura ou metáfora.”

A Doença como Metáfora é uma obra que ainda que contando com quase meio século de existência mostra a sua pertinente atualidade sendo considerada como um clássico da literatura norte-americana.

Escrita nos anos 1970,  por meio de crónicas e palestras, Sontag, professora e ativista na defesa dos direitos das mulheres e dos direitos humanos, importante intelectual norte americana, escreve sobre a sua experiência enquanto doente de cancro e sobre o estigma associado a esta doença, mostrando como, muitas das vezes, doentes oncológicos acabem por sofrer mais do estigma e juízo moral da doença do que especificamente dos sintomas fisiológicos resultantes dela.

Susan Sontag sofreu de cancro da mama em 1970 tendo morrido desse mal em 2004. Em 1978, escreve sobre os hábitos e preconceitos linguísticos e sociais em torno de doenças como a tuberculose e o cancro, mas, também, a cólera, a sífilis e o HIV-SIDA como doenças metáfora do mal. A autora de Notes on Camp (1964), obra inaugural que versa sobre a hegemonia heteronormativa vigente nos EUA, introduz-nos ao texto com uma metáfora para falar do duplo sentido da doença enquanto metáfora de cidadania, significante do discurso político e referência a novas atitudes em relação à individualidade do doente.

Através de uma série de romances, autores e psicanalistas, Sontag explora como as doenças sempre foram utilizadas como metáforas pelas sociedades que, acusadas de injustas ou corruptas, se desculpabilizam e desresponsabilizam face a determinado problema, como também, reforçando a noção de castigo, de punição, contribuíram para a estigmatização de determinadas doenças e, por extensão, da estigmatização das pessoas que estas atingiam.

Consideradas como potenciadoras de uma vida de pecado e/ou insalubridade, de comportamentos tidos como do domínio do vício, da delinquência, da perversão, do relaxamento moral, como também da influência da predisposição de determinadas personalidades para essas doenças, levaria à projeção de uma mitologia da doença envolta em paranoia política que identifica determinados membros da sociedade como populações predispostas para a transgressão e/ou vicio, servindo as doenças para as estigmatizar/erradicar.

“Qualquer doença importante cujas causas sejam obscuras, e se mostre rebelde a qualquer tratamento, tende a tornar-se objeto de um significado que a envolve. A princípio, os aspetos que inspiram maior terror (corrupção, podridão, poluição, anomia, fraqueza) são identificados com a doença. A própria doença converte-se em metáfora. Depois, em nome da doença (ou seja, usando-a como metáfora) esse horror transmite-se a outras coisas. A doença passa a adjetivo. Passa a ser utilizada para designar o que é repugnante ou feio. Em francês, uma fachada degradada é ainda hoje qualificada de lépreuse.”

Exemplo concreto é a apresentação da metáfora do HIV-SIDA como “peste gay”, criando um medo em torno da sexualidade regido pela doença, assumindo como “desvio” e “perigo” todas as relações que não as heterossexuais praticadas em regime de monogamia. Considerada como contranatura, comportamentos do domínio do vício, da delinquência, da perversão, levaria a que homens homossexuais fossem expostos durante décadas a vexames homofóbicos e perseguições políticas.

Susan Sontag chama-nos a atenção para a forma como doenças mais misteriosas têm maior possibilidade de uso como metáfora para tudo o que se considera social ou moralmente mau. A tuberculose, o cancro, o HIV-SIDA, são exemplos concretos do valor metafórico e moral da linguagem política sobre determinados corpos tidos como “decadentes” e/ou “marginais” que merecem, pelo estigma e preconceito veiculados, ser repensados também no uso condescendente da linguagem corrente.

ISBN: 9789897228902 Editor: Quetzal Páginas: 208


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