Seleção, Prefácio e Notas de Natália Correia

“Não ter medo das palavras e não recear as realidades que elas exprimem, é, sobretudo, evitar o trânsito pelo consultório do psiquiatra. Os maiores dos nossos poetas conheceram, desde sempre, esta forma de terapêutica. Difundi-la, eis o que importa; eis o que pode contribuir, de maneira decisiva, para encaminhar muita gente nessas ou noutras vias de redentora libertação.”

Ante-texto de David Mourão-Ferreira, Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica (1965)

Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica (dos cancioneiros medievais à actualidade), publicado em 1966 por Natália Correia, é um livro que mais do que materializar a lírica erótica e satírica ao longo da história da língua portuguesa, partindo da erótica trovadoresca, passando pelo libertinismo iluminista e terminando no surrealismo português, é um retrato histórico em torno de temas fraturantes na sociedade portuguesa como são os tabus em torno dos comportamentos sexuais e o papel reprodutor da mulher, a moral religiosa e a sodomia, o pudor e a sensualidade, a masculinidade e o ideal patriarcal.

Perseguidos, apreendidos, queimados, a diversidade dos textos eróticos e satíricos produzidos no decorrer da história da literatura portuguesa leva Natália Correia a apelidar a presente antologia de “cemitério de obras malditas”. Uma obra “mal dita” com uma história antiga de perseguição e que mostra não escapar ao tempo em que é publicada. Um tempo em que o Estado e a moral católica legitimavam os comportamentos sexuais em função da descendência (legítima) pelos conjugues, em que à “natureza” feminina era vedado o direito ao prazer e vida sexual, onde reinava o pudor do uso de contracetivos, da criminalização e patologização da homossexualidade e prostituição, ditavam que a afronta da temática suplantada nestes textos fosse remetida à censura e detenção da autora em 1966.

Relatório nº 7677 do arquivo dos livros censurados pela PIDE
30 de Dezembro de 1965

Reunindo figuras literárias conhecidas pela produção de lirismo erótico como são Mário de Sá Carneiro, António Botto, Fernando Pessoa, Mário Cesariny, Ary dos Santos, Natália Correia traz-nos ainda nomes célebres e inesperados como Gil Vicente, Luis de Camões, Bocage, Almeida Garrett, Camilo Castelo Branco, João de Deus, Antero de Quental, Guerra Junqueiro, António Nobre, Eugénio de Castro, entre muitos muitos outros que sendo mais ou menos conhecidos viram na escrita uma forma de expressar o seu génio.

Mas nem só de homens foi feita a escrita erótica e satírica portuguesa, também elas seriam mais do que fonte de inspiração mas também de criação poética. Nesta antologia encontramos também a lírica de Leonor de Almeida, Ana Hatherly, Maria Teresa Horta e claro, da própria, Natália Correia. Sim, quatro mulheres entre uma centena de poetas, sendo que seis deles anónimos, pondo em evidência um retrato da histórica desigualdade de género no que toca ao reconhecimento da voz feminina na criação e produção artística e literária, no direito ao corpo e uma sexualidade autónoma dos poderes sociais instituitos, por sinal, masculinos.

A presente antologia mostra ser uma obra de erudição, de criação e civismo. Uma obra que desobedece ao conservadorismo e moral repressiva do seu tempo resgatando textos que embora remetidos ao obscurantismo espelham a diversidade do lirismo português.

A permissividade com que as questões de género e sexualidade são abordadas – nas mais diferentes esferas – leva-nos a perceber a abertura, o progresso e comprometimento político e social com o respeito pelos direitos humanos em determinada sociedade. Não esquecemos o pensamento político, satírico e erótico de Natália Correia e sua luta pela integração e emancipação da mulher na sociedade portuguesa.

COSMOCOPULA

I

Membro a pino

dia é macho

submarino

é entre coxas

teu mergulho

vício de ostras.

II

O corpo é praia a boca é a nascente

e é na vulva que a areia é mais sedenta

poro a poro vou sendo o curso de água

da tua língua demasiada e lenta

dentes e unhas rebentam como pinhas

de carnívoras plantas te é meu ventre

abro-te as coxas e deixo-te crescer

duro e cheiroso como o aloendro.

NATÁLIA CORREIA

ISBN: 972-608-110-6 Editor: Antígona/Frenesi Páginas: 486


Respostas de 2 a “Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica”

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    […] território nacional. Livros como: o Anticristo, de Friedrich Nietzsche; O Capital, de Karl Marx; Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, de Natália Correia; Os Sequestrados de Altona de Jean Paul Satre; Bichos de Miguel Torga; Novas Cartas Portuguesas de […]

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