A leitura é, provavelmente, uma outra maneira de estar num lugar, escreveu o Nobel da literatura portuguesa, José Saramago.

Fonte inesgotável de conhecimento e prazer,  poderosa ferramenta de influência e transformação política, a leitura e a liberdade intelectual chegam até a ser censuradas por regimes repressivos, ditatoriais e totalitaristas, levando a que a informação, o espírito crítico sejam negados a grande parte das pessoas. 

Em pleno século XXI, assistimos cada vez mais a discursos de ódio, à propagação do medo e de conteúdos de desinformativos quanto a questões de género e sexualidade. Na Europa, EUA, Brasil e um pouco por todo o mundo, assiste-se à criação de campanhas de proibição de livros de temática LGBTQIA+. Com base em justificações de “promoção da homossexualidade” ou da “propaganda da ideologia de género”, grupos ideológicos conservadores mostram atentar a autodeterminação, a liberdade de expressão, a autodescoberta e visibilidade das experiências de pessoas LGBTQIA+.

Recordando a célebre frase de Oscar Wilde, preso numa altura em que a homossexualidade era considerada como vício e decadência, diria: “Não existem livros morais ou imorais. Os livros ou são bem escritos ou não.”

Reconhecendo a importância da leitura e da educação para as temáticas de igualdade e não discriminação, pretendemos conhecer as estantes Queer e Feministas de algumas personalidades portuguesas. Nesta conversa tivemos com Cláudia Varejão, realizadora e fotógrafa portuguesa, reconhecida internacionalmente, que partilha connosco um pouco sobre o seu percurso artístico e as suas sugestões de leituras:

1.Numa sociedade marcada pela desigualdade de género, com relevância no meio audiovisual, quais considera terem sido/serem os maiores desafios na sua carreira artística? 

Os caminhos não são linhas rectas e não têm um fim. São movimentos contínuos, com estradas paralelas e cheios de ramificações. E são também um trabalho colectivo. Sinto que herdei caminhos abertos por outras pessoas e que, ao meu lado, mais realizadoras, por todo o mundo, trilham florestas semelhantes. O mais difícil, eu diria, é não desistir. Porque são tantos os caminhos que se percorrem pela primeira vez, que podemos ter a ilusão de que estamos a fazer as escolhas erradas. É essa reeducação, de que não existe certo ou errado, que mais trabalho dá. 

2.No seu trabalho, tanto no cinema como na fotografia, documentário ou ficção, mostra uma proximidade com as pessoas que retrata. De que forma é que estas pessoas a inspiram e marcam o seu percurso artístico?

As pessoas são a minha inspiração. Sem pessoas, para mim, não há tanto interesse na vida. Elas são portadoras de graças e desgraças. E é essa complexidade que me prende o olhar. Depois há a questão da proximidade. Eu acredito que se estivermos muito tempo a olhar para algo ou alguém, há dimensões ocultas que se revelam. A isso chamamos intimidade. Eu gosto muito de me mover nesse território. Aprendo muito.

3. Em 2022 dá-se a estreia mundial de Lobo e Cão no 79º Festival de Veneza, onde arrecada o prémio de melhor filme. Sendo este um filme que retrata a comunidade Queer da ilha de São Miguel, região marcada pelo conservadorismo e LGBTQIA+fobia, considera que o filme teve um impacto positivo naquela comunidade?

Eu só posso falar daquilo que vejo de fora. Não vivo na ilha e, portanto, corro o risco de ter uma leitura romantizada. Mas a partir da minha distância, que é também feita de muita proximidade e afecto, sinto que o filme foi uma pedra de toque. O terreno era fértil, tinha os nutrientes todos para fazer crescer qualquer semente que fosse lançada. Isso obrigou-nos a um forte sentido de responsabilidade. Não foi um filme feito de forma lúdica ou leviana. Vimos transformações micro e macro a ocorrer. Desde o filho que faz o seu coming out à mãe num ensaio do filme ou, o exemplo de mais óbvia compreensão, a criação de uma associação de apoio a pessoas e famílias LGBTQIA+ para todo o arquipélago. São muitos os frutos da passagem do filme. É muito bonito ver. Mas sublinho, o filme pode ter sido um bom pretexto, mas o trabalho de continuidade é feito pelas pessoas locais e pela sua capacidade inspiradora de transformação e solidariedade. É muito para além de um filme.

4.Março foi o mês da história das mulheres. Pergunto-lhe, que mulheres a inspiram no cinema? E na literatura?

Eu diria que são mais as mulheres anónimas que me inspiram. São aquelas que quebram as normas de género no seu quotidiano e ao longo de uma vida inteira que me ajudam a construir o meu caminho. Elas, sim, são cinema e literatura. O meu ofício de realizadora é tentar estar ao nível destas mulheres e dar-lhes voz com o meu cinema.

5.Tem algum livro/autor com que mais se identifique?

São tantas e tantos que não caberiam aqui. Tenho um altar vivo e em constante construção. Não vai estar fechado nunca. E ainda bem. É para me lembrar que tenho sempre tanto para conhecer. 

6.Que leitura nos poderia recomendar?

A argentina Camila Sosa Villada escreveu um livro que é literatura de alto nível e foi publicado em Portugal pela BCF Editores: As Malditas.

Cláudia Varejão nasceu no Porto e estudou realização no Programa de Criatividade e Criação Artística da Fundação Calouste Gulbenkian em parceria com a German Film und Fernsehakademie Berlin e na Academia Internacional de Cinema de São Paulo. Estudou ainda fotografia no AR.CO Centro de Arte e Comunicação Visual em Lisboa. É autora da triologia de curtas-metragens Fim-de-semana, Um dia Frio e Luz da Manhã. Ama-San, retrato de mergulhadoras japonesas, foi a sua estreia nas longas metragens, recebendo dezenas de prémios em todo o mundo, seguindo-se No Escuro Do Cinema Descalço Os Sapatos e Amor Fati. Lobo e Cão, o seu mais recente filme, estreou no 79º Festival de Veneza e recebeu o prémio máximo da secção Giornate Degli Autori. Os seus filmes têm sido selecionados e premiados pelos mais prestigiados festivais de cinema, passando por Locarno, Roterdão, Visions du Reel, Cinema du Reel, Karlovy Vary, Art of the real – Lincoln Center, Bienal de Veneza, entre muitos outros. A par do seu trabalho como realizadora desenvolve um percurso como fotógrafa e tem sido convidada a dar aulas e workshops em diversas escolas de Cinema e Arte. O seu trabalho, tanto no cinema como na fotografia, documentário ou ficção, vive da estreita proximidade com as pessoas retratadas.


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