São José Almeida

“Este é um livro inacabado, um princípio de trabalho, um abrir de porta possível para dar início a um caminho que a sociedade portuguesa tem que trilhar, o de revisitar a sua história, o de se reencontrar consigo mesma. A história e as histórias da homossexualidade portuguesa fazem parte da história de Portugal. Essa parte da história está apagada, esquecida, ignorada.”

São José Almeida, Homossexuais no Estado Novo (2010)

Homossexuais no Estado Novo, da jornalista São José Almeida, poderá ter sido a obra mais completa que li sobre a homossexualidade portuguesa no período fascista do Estado Novo (1933-1974). Acompanhando jornalisticamente a luta LGBTQIA+ pela conquista de direitos em Portugal, a jornalista e, também, especialista em questões relacionadas com a defesa de direitos humanos, conta-nos a aventura que foi o abrir gavetas da história que estavam fechadas há décadas, a história de um assunto tabu, remetido ao ostracismo social, a história da homossexualidade em Portugal.

Bem sabemos que o ato de recordar a história é , no mínimo, indispensável para não repetir os erros do passado. Neste caso, tal como dentro de uma ética feminista, São José Almeida faz mais do que recordar a história contemporânea de Portugal, a autora mostraria reescrever a história dos homossexuais em Portugal durante praticamente todo o século XX, uma parte da população que fora perseguida, condenada, invisibilizada do reconhecimento político e social por mais de um século.

“Mexer num assunto que está escondido, remetido ao ostracismo social, é de facto um desafio. Procurar abrir gavetas que estavam há décadas fechadas, tornou-se numa revelação espantosa.-Tentar trazer à luz do dia factos e aspectos da vida de pessoas, que até fazem parte da história, mas que vêem parte da sua personalidade, a da sua sexualidade, apagada, é uma sensação de justiça imensa – para já não falar, no concreto, da sensação única de perceber que há exemplares únicos arquivados na Biblioteca Nacional cujas páginas são abertas com uma faca perante os nossos olhos, revelando, assim, que nunca ninguém os foi ali requisitar e ler.”

São José Almeida (2010)

Partindo de uma reportagem feita para o jornal domingo do Público, a autora lança este livro num ano “chave” para o aprofundamento da democracia portuguesa e do princípio de não discriminação com base na orientação sexual. Estamos em 2010, ano em que o casamento entre pessoas do mesmo sexo é reconhecido pela lei portuguesa. Após anos de manifestações e de luta por um direito que é inalienável, o direito à família, assistimos agora há possibilidade de desconstruir o paradigma hierárquico de género assente na moral do modelo de família burguesa do séc.XX. Assistimos à democratização da homossexualidade ou, partindo de um raciocínio mais crítico quanto ao reconhecimento legal da diversidade Queer, de um processo de assimilação em curso.

Ainda assim, é inegável a importância do reconhecimento das famílias homoparentais pelo Estado português. O reconhecimento de outras relações de afetividade e de amor que não se baseiem apenas no modelo de família heterossexual permite uma desconstrução das relações sociais de género assim como da própria sexualidade enquanto lógica meramente reprodutora – modelo apregoado por séculos que aprisionara o destino feminino à subordinação patriarcal. Mas regressemos ao livro.

O que era ser homossexual em Portugal? O que é viver uma condição estigmatizada e estigmatizante, em que não há identidade, tão-só uma afetividade e uma sexualidade, quase sempre clandestinas? Estas são duas questões centrais que conduzem a investigação da jornalista e que a levaram a perscrutar as vidas e intimidades de pessoas que foram ao longo da década de 1920, 30 e 40, encarceradas, presas em albergues, ou feitas de “cobaias” no Instituto de Medicina Legal em Lisboa: os “uranistas, maricas, paneleiros, panascas, invertidos, bichas, larilas, routos, sáficas, tríbades, viragos, lésbicas, fufas, fressureiras“, daquelx que resistiram ao opróbrio da homossexualidade por mais de meio século.

“Sem psiquiatria não havia homossexualidade. A construção da conceptualização do que é ser homossexual foi feita pela medicina e, em especial, por médicos que tratavam distúrbios de personalidade e de comportamento. Se a homossexualidade passa a ser o comportamento sexual desviante da regra estabelecida como socialmente aceite, nasce no século XIX a forma científica de corrigir essa fuga à normatividade. Se há pessoas que cometem a falha social de não viverem a sexualidade socialmente útil e politicamente enquadrada, há que reorientá-las. Aqueles que fogem do modelo de sociedade patriarcal e heterossexual ideologicamente aceite têm que ser colocados no caminho certo.”

São José Almeida (2010)

Dividido em 14 capítulos principais o livro traz-nos os processos pelos quais a sociedade, mais precisamente o Estado português, encararia a homossexualidade. Da psiquiatrização – “doença que é preciso curar” – à criminalização – “sujeitos a medidas de segurança do crime de sodomia” -, a autora mostra como a história da regulação da homossexualidade em Portugal mostra estar, à semelhança de outros países ocidentais, cheia de contradições. Contradições no que diz respeito à aplicação das normas da nova ordem social e permissividade que algumas classes sociais possuíam nas suas vivências íntimas e sociais, sendo-lhes concedidas facilidades que grupos sociais mais desfavorecidos jamais conheceriam. O medo dos “arrebentas”, policiais que vestidos à paisana chantageavam as suas “conquistas noturnas”, à troca de dinheiro ou outros benefícios materiais, são exemplo da política do medo que circulava e perseguia as classes mais desfavorecidas.

“Assim, o crime homossexual só existia, enquanto tal, quando era fruto da perversão, se assolava os grupos sociais que viviam fora das regras e da moral da nova ordem da sociedade burguesa, ou seja quando se tratava de anti-sociais e criminosos, como prostitutas, rufiões ou vadios em geral.”

São José almeida (2010)

São José Almeida recupera relações homossexuais reconhecidas entre as classes mais abastadas como aquelas praticadas por Amélia Rey Colaço e Robles Monteiro; Fernanda de Castro e António Ferro – personagens que fazendo parte do regime eram protegidas por Salazar -, mas também de Virginia Quaresma, Alice Moderno, Olga Moraes Sarmentos ou Palmira Tito de Morais, figuras do feminismo lésbico que tendo a sua sexualidade descriminada escapavam às teias persecutórias dos “vícios contra a natureza”.

São vários os rostos e obras que São José Almeida recupera das sombras da história. Entre aqueles que permaneciam no reino do não-dito aos que começavam a assumir a sua sexualidade nas décadas de 1970 e 1980, a jornalista foi traçando o caminho da homossexualidade até à sua descriminalização em 1982. Através dos diferentes relatos que este livro nos traz percebemos o longo caminho a percorrer na libertação de preconceitos e prejuízos sobre a sexualidade, especialmente num tempo em que assistimos ao regresso de correntes autoritárias e fascistas na Europa.

A sexualidade, o género, a raça, a classe continuam a ser motivo de luta enquanto as formas de discriminação e desigualdade existirem e privarem certas existências ao direito de liberdade e autonomia plenas.

ISBN: 9978-989-676-021-2 Editor: Sextante Editora (chancela) Páginas: 240


Uma resposta a “Homossexuais no Estado Novo”

  1. Avatar de Mês da História LGBTQIA+ – LeiturasQueer

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